Vejo os fatos políticos deste nosso incurável Brasil mais ou menos como a fábula da garça velha, que li há alguns anos nas Histórias de Tia Anastácia, do Monteiro Lobato. A tal garça nascera, crescera e vivera sempre às margens de uma lagoa muito rica em peixes. Com o passar dos anos, a garça foi ficando com os músculos emperrados, a vista cansada, enfrentando imensa dificuldade para pescar. Apavorava-lhe a idéia de morrer de fome. Lembrava-se com tristeza do tempo em que, com olhos agudos, penetrantes, zombava daquelas águas turvas e dos peixes que não escapavam de suas bicadas certeiras. Num desses dias angustiantes, em que percebera a presença do caranguejo, teve um lampejo. Com um jeito conspícuo, fala mansa e pausada, disse-lhe: "Devo avisá-lo, amigo caranguejo, de um fato muito sério. Esta lagoa está condenada. Fiquei sabendo que os donos destas terras já estão convidando a vizinhança para assistir o esvaziamento da lagoa e pegarem a peixarada toda". O caranguejo, apavorado, foi logo entrando na água para transmitir a notícia aos peixes. Foi um rebuliço tremendo. Nada pra lá, nada pra cá, conversa daqui, discute dali, grita de lá, peixe desgarrado do cardume, cardumes misturando-se com outros e ninguém sabendo como agir. Depois de algum tempo, vieram à beira da lagoa pedir um conselho à garça que, impassível, a tudo assistia. Pediram-lhe que os livrassem da iminente calamidade. A garça, matreira que só ela, fez ares de quem refletia e por fim respondeu que o único jeito era mudarem-se todos para o Poço da Pedra Branca. "Mas como, se não há ligação entre a lagoa e o tal poço!" Exclamaram aflitos os peixes. "Calma, minha gente, estou aqui para resolver qualquer dificuldade. Posso transportar todos vocês no meu bico". Não vendo outra solução, os peixes aceitaram a proposta da garça, que os transportou a todos para o Poço da Pedra Branca. Na verdade, um poço pequenininho, cercado de pedras, de águas cristalinas e areia branca no fundo, onde a garça poderia pescá-los tranqüilamente até o fim da vida. Deu para perceber que estamos na mesma situação dos peixes do Poço da Pedra Branca? Que fomos levados no bico? Não? Tentarei, na próxima vez, outra fábula mais adequada, assim que descobrir onde meus filhos enfiaram o livro do Lobato.
Nota do Editor: Eduardo Antonio de Souza Netto [1952 - 2012], caiçara, prosador (nas horas vácuas) de Ubatuba, para Ubatuba et orbi.
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