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COLUNISTA
Eduardo Souza
04/02/2009 - 06h30
Memórias de um ubatubano
 
 

Cine Iperoig. Quando inaugurou, não me lembro direito a data, não pude entrar. Não pude assistir a soirée. Não tinha idade suficiente. Mas, na primeira matinée de domingo, eu estava lá, sentadinho nas primeiras fileiras defronte àquela tela enorme. Acho que foi Tarzan, o filme a que assistimos. Com o Johnny Weismüller? Ou seria com o Gordon Scott?...

O velho cinema-teatro, na Praça Nóbrega, havia sido desativado. A televisão ainda não chegara a Ubatuba. Imagina a expectativa da garotada com a estréia do Cine Iperoig. Todos de banho tomado, arrumadinhos, com nossas melhores roupas domingueiras. Um evento... inesquecível. Do lado de fora, os carrinhos de pipoca, os vendedores de pirulito em tabuleiros, de amendoim torrado e de pinhão cozido. Na bilheteria, a Vilma Xavier. O Zé Diniz de porteiro. No saguão do cinema, uma bonbonnière chiquérrima. Tudo cheirando a novo, tudo bem asseado: as poltronas, as cortinas com listas coloridas em dégradée e os banheiros. Um luxo! Nas paredes laterais da sala de exibição, pinturas com motivos indígenas estilizados para fazer jus ao nome do cinema.

Enquanto se aguardava o início da sessão, música ambiente. Músicas inesquecíveis. Uma de que me lembro neste instante: Lisboa Antiga, com a orquestra do Nelson Ridle. Dalvo, o gerente, tinha, para a época, um bom gosto danado. De repente, fechavam-se as cortinas da entrada, suspendia-se a música, apagavam-se as luzes e... O sujeito que operava o projetor, o cinematógrafo, era o inesquecível e insubstituível Dito Cambito. Figurinha carimbada, um personagem pitoresco que ficou na história não oficial de Ubatuba, justamente a história mais intensa, mais fecunda. O cinema e os gibis fizeram minha cabeça, meu imaginário.

Não perdia uma matinée de domingo. Depois das sessões, aproveitávamos o restante do dia para encenar nas ruas e terrenos baldios o que víamos na tela. Improvisávamos revólveres e espingardas com raízes de ciosa, arcos e flechas de bambu e espadas de cabos de vassouras inservíveis. O Toninho Sidônio gostava de imitar os trejeitos do Randolph Scott e os do Audie Murphy. O jeito de andar, a rapidez em sacar o revólver (o de ciosa, é claro) – Mãos ao alto! E tome tiro para todo lado. Sorteava-se com pedrinhas para saber quem seria mocinho ou bandido naquelas aventuras sem roteirista. Escolhíamos um determinado lugar para servir de prisão. Depois a garotada se espalhava e começava a brincadeira. Naquela época, o sonho de cada moleque era ganhar de presente um revólver de brinquedo, parecido com aqueles dos cowboys. Quando ganhei o meu primeiro Colt, fiquei bacana do pedaço. Nada de querer ser bandido. Uma inveja danada dos amigos. Gozado, não me lembro de que alguém tivesse sido influenciado a ponto de ter se tornado um marginal, um bandido pelo uso, na infância, de revólveres e outras armas de brinquedo. Bons tempos aqueles em que as ruas eram extensões das casas e não havia tantos sociólogos e pedagogos querendo mudar o mundo como hoje em dia.

Quando assisti, mais recentemente, ao Cinema Paradiso, senti-me na pele daquele menino, protagonista do filme. Na verdade, lembrei-me dele quando soube que demoliram o nosso Cine Iperoig – um símbolo para várias gerações de ubatubanos. Doeu. Mas é preciso resignar-se, mesmo porque os nossos ubatubanistas e mentores da caiçaraneidade não discordaram desse feito. Gostaria de lembrar Joaquim Nabuco, falando do espírito de aperfeiçoamento e de progresso: “... o que resulta é que as reformas, as modificações serão governadas por algumas regras elementares: conservar do existente tudo o que não seja obstáculo invencível ao melhoramento indispensável; outra, que o melhoramento justifique – e para justificar não basta só compensar – o sacrifício da tradição, ou mesmo do preconceito que o embarga; outra regra é respeitar o inútil que tenha o cunho de uma época, só demolir o prejudicial...” (in Minha Formação - Joaquim Nabuco)


Nota do Editor: Eduardo Antonio de Souza Netto [1952 - 2012], caiçara, prosador (nas horas vácuas) de Ubatuba, para Ubatuba et orbi.
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