O carnaval perdeu a graça. Não é mais aquele evento essencialmente de ruas e praças, de blocos carnavalescos, de mascarados, de fantasias improvisadas, de criatividade e de espontaneidade popular. No passado, não havia esse negócio de desfile de escolas de samba – verdadeiras instituições subvencionadas com dinheiro público e, em alguns casos, com dinheiro escuso –, em espaços predeterminados, disputando premiações, em que uma platéia confinada assiste passivamente aos outros se divertir. Os blocos dos velhos e bons carnavais foram sempre criações voluntárias dos próprios carnavalescos, constituídos de gente modesta, com o objetivo de brincar e abrilhantar o carnaval. Nada de concorrer a prêmios ou depender dos cofres municipais. Não ficavam limitados a desfilar por essa ou aquela rua – as ruas da cidade lhes pertenciam. Epa! Lá vem o bloco do Miguel Ageu descendo a Maria Alves... E o povo ia atrás, na folia. E carnaval tem de ter máscaras, senão também perde a graça. Ruas com crianças e adolescentes mascarados, divertindo-se a valer. O carnaval acabou quando proibiram as máscaras. Hoje, só as podem usar, aqueles capuzes escuros, os bandidos e a polícia. Nunca vi tantos capetas mirins nas ruas de Ubatuba como naqueles carnavais das décadas de cinqüenta, sessenta. Apesar de que éramos endiabrados com ou sem máscaras e não só no carnaval. Quando me recordo desses acontecimentos, uma pessoa neles é recorrente: meu pai. Uma figuraça! Não era tão conhecido por pertencer a uma daquelas trinta – talvez menos – famílias que constituíam a cidade de Ubatuba, mas por fazer, dentre outras esquisitices, máscaras e cabeções, do tipo João Paulino e Maria Angu. Nunca na vida brincou o carnaval. Era protestante, de família protestante, da Presbiteriana. Mas adorava fazer máscaras para os outros se divertir. E as máscaras, quem as conheceu sabe, eram sensacionais. O velho tinha suas excentricidades. Aquele ar sério escondia uma eterna criança. Divertia-se vendo os outros se divertir, principalmente a molecada. Fazia máscaras de todos os tipos e tamanhos. O danado era um artista. Os moldes eram esculpidos em argila, depois recobertos com inúmeras camadas de papel, de várias espessuras e de vários tipos (a primeira camada era sempre de tiras de jornais), colados com uma cola que ele mesmo preparava no fogão a lenha que tínhamos em casa, instalado num rancho no fundo do quintal. Tudo era secado ao sol ou nas proximidades de uma fogueira, que providenciava quando o tempo não ajudava. Em seguida vinha o acabamento: verniz, esmalte sintético, tinta a óleo, cordas desfiadas e tingidas para cabelos, bigodes, pêlos etc. etc. etc. Esses moldes, depois de pronta a face da máscara, ele os desfazia, deixava lisinho, para usá-los na confecção da parte posterior da cabeça. As duas partes eram depois unidas, costuradas e coladas. Um hobby, dentre outros que tinha, fazer máscaras e armazená-las naquele rancho no fundo do quintal, à espera do reinado de Momo. Houve um carnaval, se não me engano o de 1965, em que ele fez dois daqueles enormes cabeções: um, a cara do Jânio Quadros; o outro, a do Adhemar de Barros. O Jânio, com o famoso bigode, o olho vesgo e os indefectíveis óculos de aros escuros. O Adhemar, com sua marca registrada: o nariz, a bicanca. Não tenho bem certeza, mas acho que o Fernando Frediani e o Fifo foram os que brincaram o carnaval com elas naquele ano. De outra feita, a professora Day Ferreira Gomes encomendou-lhe umas 10 ou 15 máscaras de bichos para serem utilizadas numa escola infantil nos EUA onde a inesquecível professora estava trabalhando. Lá foi o velho Manequinho esculpir no barro as caras de macaco, coelho, onça, pato, galo, gato, leão etc. Não cobrou um centavo. Nunca cobrou pelas máscaras que fazia. Tenho muitas e boas lembranças dos carnavais de minha infância e de minha juventude em Ubatuba. Brinquei muito. Se, de um lado, meu pai era protestante, de outro, eu e mamãe éramos católicos – fui batizado e crismado –, de ir à missa e seguir procissão. Fui um exemplo vivo de ecumenismo. Bons tempos aqueles. O carnaval não tinha tanta malícia. Era mais comedido, todo mundo conhecia todo mundo. Às vezes, como neste momento, me vem o cheiro, delicioso e indescritível, das matinês nos salões de baile do “Risca-Faca” e do Itaguá Praia Clube, impregnados de lança-perfume, aqueles da Rhodia. Lança-perfume, confete, serpentina e a possibilidade de um flerte, de pegar na mão da garota almejada, fantasiada de índia ou de colombina, quando se formavam os cordões, ao som de uma marcha-rancho: A estrela d’alva no céu desponta, e a lua anda tonta com tamanho esplendor...
Nota do Editor: Eduardo Antonio de Souza Netto [1952 - 2012], caiçara, prosador (nas horas vácuas) de Ubatuba, para Ubatuba et orbi.
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