I - A instituição da Taxa de Bombeiro
Diante da dificuldade estatal de manter Corpos de Bombeiros em todos os municípios, o Estado de São Paulo, com base na Lei 684, de 30 de setembro de 1975,[1] autorizou o Poder Executivo Estadual a celebrar convênios de cooperação com municípios para a manutenção de unidades do Corpo de Bombeiros no território das respectivas municipalidades, devendo o Estado fornecer os efetivos (policiais militares do corpo de bombeiros) e as prefeituras locais subsidiar as necessidades materiais para o funcionamento das unidades instaladas. Com base em acordo celebrado com o Estado de São Paulo, nos termos das disposições acima, a municipalidade de São Sebastião, litoral norte do Estado, por meio da Lei Complementar 79, de 19 de dezembro de 2006,[2] instituiu a “Taxa de Serviços de Bombeiros”, visando captar recursos para o Fundo Municipal de Manutenção do Corpo de Bombeiros de São Sebastião,[3] com a finalidade de prover recursos para aquisição de combustíveis, peças e lubrificantes consumidos pelos veículos e equipamentos utilizados na execução dos serviços de bombeiros, bem como para a manutenção da infra-estrutura material e de formação para que o Corpo de Bombeiros desenvolva sua missão de prevenção e combate a incêndio, salvamento, resgate e demais serviços a ele afetos na região. Segundo os dispositivos da Lei Complementar 79/96, a taxa será lançada anualmente e será “devida pela utilização, efetiva ou potencial, dos serviços de busca e salvamento aquáticos ou terrestres, serviços de proteção e combate a incêndio e de resgate, prestados pelo Corpo de Bombeiros, sendo cobrada, dos respectivos proprietários ou possuidores, em função do potencial calorífico dos imóveis, urbanos e rurais”, situados no município de São Sebastião. A base para cálculo levará em conta o potencial calorífico do imóvel, medido em megajoule. II - Da organização do Estado sobre segurança pública Segundo dispõe os artigos 139, 141 e 142 da Constituição do Estado de São Paulo, a Segurança Pública é dever do Estado que a manterá por meio de sua polícia, a qual será integrada pelas polícias Civil, Militar e Corpo de Bombeiros.[4] Esta última tem, por sua vez, além de suas atribuições definidas em lei estadual, a execução das atividades de Defesa Civil. De modo objetivo, a Constituição Paulista, ao estatuir as suas regras de organização, estabeleceu que são atribuições do Estado de São Paulo a disciplina, a organização e o funcionamento dos serviços inerentes à Segurança Pública deste Estado, não cabendo a qualquer outro órgão. Aos municípios é permitida tão somente a constituição da guarda civil destinada à proteção de seus bens, serviços e instalações, respeitando-se a aplicação da legislação federal.[5] Especificamente em relação ao Corpo de Bombeiros, a Carta Paulista estabelece que lei estadual prescreva condições para facilitar e estimular a criação de Corpos de Bombeiros Voluntários nos municípios. Sobre isto, importa alertar que a estimulação do voluntariado pelo Estado não implica a delegação de sua atribuição relativa à Segurança Pública, a qual continua sendo seu dever constitucional. O Corpo de Bombeiros presta serviço público propriamente dito e, portanto, privativo do Poder Público, não podendo ser exercido por voluntários.[6] Evidencia-se, assim, que as municipalidades não possuem competência para prestar serviço de Segurança Pública, pois essa atividade é atribuição reservada ao Estado para preservação da ordem pública e incolumidade das pessoas e do patrimônio. Trata-se de atribuição constitucionalmente indelegável e o voluntariado exerce mera atividade de suporte ao serviço do Estado. Ademais, os municípios, embora detentores de autonomia política, legislativa, administrativa e financeira devem atender, nos termos dos artigos 111 e 144 da Constituição Paulista, os princípios estabelecidos na Constituição Federal e Estadual, especialmente legalidade, finalidade, motivação e interesse público, não podendo, por isso, legislar sobre matéria exclusiva do Estado. Por fim, sobre os critérios de repartição das competências, importa destacar que não se aplica ao caso exposto o critério do interesse local dos municípios,[7] pois em matéria de segurança pública não há predominância do interesse municipal sobre o do Estado. III - Inconstitucionalidade da Taxa de Bombeiro de São Sebastião III.1 - Inconstitucionalidade por afronta à organização do Estado Em que pese a louvável finalidade da arrecadação da taxa de bombeiro pelo município de São Sebastião, a sua cobrança é inconstitucional. Em primeiro plano, destaque-se que, de fato, o município de São Sebastião não detém poder de polícia, não presta e não disponibiliza os serviços de bombeiros ao cidadão-administrado, limitando-se a dar suporte material, nos termos da lei 684/75, ao Corpo de Bombeiros do Estado de São Paulo. Outro aspecto é que, de direito, a Constituição do Estado de São Paulo estabelece que os municípios não possuem competência para prestar serviço de Segurança Pública, pois essa atividade é atribuição constitucionalmente reservada ao Estado para preservação da ordem pública e incolumidade das pessoas e do patrimônio. Em remate, esse primeiro panorama já nos revela a inexistência da prestação ou disponibilização dos serviços de Corpo de Bombeiros pelo município de São Sebastião e, ainda, revela também que a impossibilidade jurídica de os municípios do Estado de São Paulo prestarem serviços de bombeiro advém da própria Constituição Estadual. (artigo 144) [8] Nessa esteira, sob o enfoque jurídico-constitucional, a eventual prestação de serviços inerentes às atividades do Corpo de Bombeiros pelo município de São Sebastião, e eventualmente por outras municipalidades paulistas, configura, por si só, usurpação das atribuições do Estado, caracterizando inconstitucionalidade, de natureza administrativa, dos atos da administração municipal por afrontar os princípios de organização e autonomia do Estado insculpidos nos artigos 111, 139, 141, 142, 144 e inciso II do artigo 160, todos da Constituição Paulista.[9] III.2 - Inconstitucionalidade tributária propriamente dita III.2.1 - Hipótese tributária inconstitucional Ademais, em decorrência dessa circunstância limitativa da competência administrativa dos municípios do Estado de São Paulo, podemos inferir, então, um segundo enfoque, no sentido de que eles também não podem instituir taxas visando captar recursos para a manutenção dos referidos serviços. Há também, por conseqüência, uma limitação constitucional à competência tributária dos municípios[10] para a instituição de taxas que prescrevam como hipótese tributária a prestação de serviços não incluídos em sua atribuição constitucional. Assim, podemos notar que o poder de tributar por meio de taxas está limitado, vinculado à atribuição constitucional das atividades administrativas do ente político tributante, resultando que a instituição de taxas sobre serviços fora das suas atribuições, juridicamente impossíveis de serem prestados pelos municípios, configura outra inconstitucionalidade, agora de natureza tributária, por infração ao disposto no inciso II do artigo 160 da Constituição do Estado de São Paulo.[11] III.2.2 - Base de cálculo inconstitucional Como se não bastasse o apontamento acima, outra ótica revela mais uma inconstitucionalidade da famigerada taxa de bombeiro do município de São Sebastião. A instituição da referida exação também não cumpre a exigência prevista na parte final do inciso II do artigo 160 da Constituição Estado de São Paulo, qual seja a de não se tratar de serviço público específico e divisível. Segundo os incisos II e III do artigo 79 do Código Tributário Nacional, consideram-se serviços públicos “específicos, quando possam ser destacados em unidades autônomas de intervenção, de unidade, ou de necessidades públicas” e “divisíveis, quando suscetíveis de utilização, separadamente, por parte de cada um dos seus usuários.” Nos termos da Lei Complementar municipal 79/06, a “taxa de serviços de bombeiros” estabelece como base de cálculo, critério mensurável do fato jurídico tributário, o potencial calorífico de cada imóvel em megajoule. Ora, relativamente a gama de serviços prestados pelo Corpo de Bombeiros, esta unidade de medida só serve para medir a especificidade do serviço relativamente a incêndios e, no litoral, como se sabe, a maior ocorrência dos serviços de bombeiros está relacionada com a busca e resgate de vítimas de afogamento, além de outras ocorrências com vítimas de trânsito em auto-estradas. Por essa forma, ainda que desconsiderássemos as outras inconstitucionalidades acima apontadas, entendemos ausentes os critérios necessários a estabelecer a especificidade e divisibilidade[12] de toda a gama de serviços potencialmente utilizados pelos contribuintes, o que caracteriza mais uma infração ao disposto no inciso II do referido artigo 160 da Constituição Paulista.[13] Como é cediço, a base de cálculo confirma, infirma ou afirma o critério material da hipótese de incidência tributária. No caso da pretensão do município de São Sebastião, a base de cálculo estipulada em megajoule infirma o critério material, pois revela manifesta incompatibilidade entre o padrão de medida e os serviços dimensionados como hipóteses tributárias.[14] IV - Conclusão Diante de todo o exposto, resta-nos concluir que não está caracterizado o exercício regular do poder de polícia do município de São Sebastião para a instituição da “taxa de serviço de bombeiros”, prescindindo, ainda, da prestação, efetiva ou potencial, de serviços de sua atribuição constitucional, infringindo os princípios da organização e autonomia administrativa e tributária do Estado de São Paulo, dispostos nos artigos 111, 139, 141, 142, 144 e inciso II do artigo 160 da Constituição do Estado de São Paulo. Ademais, frise-se que o serviço de segurança pública, incluindo-se as atividades do Corpo de Bombeiros, além de ser de competência privativa do Estado de São Paulo, é insuscetível de utilização individual e mensurável, devendo ser custeado pelos impostos estaduais pagos pelos contribuintes em geral, conforme prevê o artigo 5º, da Lei 684, de 30 de setembro de 1975, retro transcrito. Por fim, resta alertar que, no Estado de São Paulo é vedado a qualquer município instituir taxa de serviço de bombeiro. Referências Bibliográficas ATALIBA, Geraldo. Hipótese de incidência tributária. 6ª ed. São Paulo. Malheiros Editores, 2003 BARRETO, Aires. Base de Cálculo, Alíquota e Princípios Constitucionais. 2ª ed. São Paulo, Max Limonad, 1998 BRITTO, Edvaldo. “Critérios para distinção entre taxa e preço”. Martins, Ives Gandra da Silva (coord.). Caderno de Pesquisas Tributárias 10 — Taxa e Preço Público. São Paulo, Centro de Estudos de Extensão Universitária/Resenha Tributária, 1985 BUSSAMARA, Walter Alexandre. Taxas – Limites Constitucionais. São Paulo. Malheiros Editores. 2003 CARRAZZA, Roque Antonio. Curso de Direito Constitucional Tributário, 19ª ed. São Paulo, Malheiros Editores, 2003 CARVALHO, Paulo de Barros. Curso de Direito Tributário. 18ª ed. São Paulo. Ed. Saraiva, 2006 CONSTITUIÇÃO - Estado de São Paulo. Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2006 MEIRELLES, Hely L. Direito Municipal Brasileiro, 15ª ed. São Paulo, Malheiros Editores, 2006 Notas de Fim [1] Link para acesso ao texto integral da Lei 684, de 30 de setembro de 1975 [2] Link para acesso ao texto integral da Lei Complementar 79, e 22 de dezembro de 1996 [3] Link para acesso ao texto integral da Lei 1.832, de 19 de dezembro de 1996 [4] Conforme artigos 139, 141 e 142 da Constituição do Estado de São Paulo [5] Artigo 148 da Constituição do Estado de São Paulo [6] Nesse sentido Hely L. Meirelles, Direito Municipal Brasileiro, 15 ed. 2006, Malheiros Editores, p. 341/343 [7] Como ocorre com o trânsito, ocupação do solo, ordenamento territorial etc. Sobre repartição das competências, confira Hely L. Meirelles, ob. cit. P. 338 [8] Nesse sentido adverte Walter Alexandre Bussamara, p. 39. Há necessidade do exercício regular do poder de polícia [9] Link para acesso aos artigos da Constituição do Estado [10] Como ensina Carrazza: “Portanto, a criação legislativa da taxa ou da contribuição de melhoria pressupõe a existência da competência administrativa da pessoa política tributante.” Curso, p. 576 [11] Esse dispositivo está em sintonia com a regra do inciso I do artigo 79 do CTN [12] Divisibilidade e especificidade conforme Geraldo Ataliba, Hipótese de incidência tributária, p. 152 e Edvaldo Brito em “Critérios para distinção entre Taxa e Preço”, Caderno de Pesquisas Tributárias 10/ p. 76/77 [13] Seguindo as lições de Aires Barreto, “é no aspecto material da hipótese de incidência que, por seus atributos, encontramos a suscetibilidade de apreciação e dimensionamento, com vista à estipulação do objeto da prestação.” [14] Conforme ensina Paulo de Barros Carvalho. Curso, 18ª ed. Saraiva, 2006, p. 345 Nota do Editor: Silvio Luís de Camargo Saiki é advogado especialista em Direito Tributário pelo Instituto Brasileiro de Estudos Tributários, mestrando em Direito Público/Tributário pela PUC/SP e bolsista CNPq.
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