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COLUNISTA
Eduardo Souza
30/11/2007 - 10h04
Biblioteca, livros e leituras
 
 

Certa ocasião, entrando na adolescência, ganhei um livro de presente: A volta ao mundo por dois garotos, de Henri de La Vaux e Arnald Galopin. Li-o todinho. Umas trocentas páginas. Foi o meu primeiro livro. Comecei e não consegui parar. Até então, era um devorador de gibis. Depois li o Cazuza, do Viriato Correia. Em seguida, tudo o que me foi possível ler do Monteiro Lobato. Em 1967, qual não foi a minha alegria de saber que a prefeitura havia criado - na administração do Ciccillo Matarazzo, através do decreto nº 52, em 06/07/1967 - e estava montando uma biblioteca, numa sala do prédio da Câmara Municipal, pertinho da casa de meus pais! Corri até lá.

Havia livros espalhados por todo canto, e duas senhoras empenhadíssimas em cadastrá-los e organizá-los nas prateleiras: dona Jenny Bueno dos Santos Aguiar e dona Jorgina Rocha. Ofereci-me a ajudá-las. Um prazer indizível, tocar naqueles livros, sentir-lhes o cheiro, manuseá-los. Até hoje tenho essas mesmas sensações. Tornei-me rato da Ateneu Ubatubense. Minha ficha de usuário: nº 8. Outros adolescentes de então - como o webmaster da revista O Guaruçá, Luiz Moura -, também colaboraram na organização da nossa biblioteca. Lembro-me de dona Jenny nos corrigindo, ensinando como segurar e folhear um livro para que se evitasse estragos na encadernação. Tenho um enorme carinho pela Biblioteca Municipal Ateneu Ubatubense. Dei minha contribuição quando de sua criação, na minha adolescência e, mais tarde, quando assessor administrativo da Fundart (Fundação de Arte e Cultura de Ubatuba), na gestão da professora Silvia T. Issa, conseguimos ampliar o acervo em 5.000 volumes, além de adquirirmos mesas, cadeiras, estantes e pintarmos o prédio. Só não informatizamos porque faltou grana.

A partir da inauguração, li um bocado de livros. A esmo, sem método, sem orientação. Porém, li os clássicos. A Ateneu Ubatubense tinha-os quase todos. Os nacionais e os portugueses. Machado de Assis seduziu-me. Até hoje, volta e meia, estamos em colóquios íntimos. Mas não é só literatura não. Na biblioteca municipal você encontra bons livros de filosofia, psicologia, história, sociologia etc.

Tenho a impressão de que naqueles tempos lia-se mais livros do que hoje. Os professores de português, no ginásio, exigiam leitura e interpretação de autores nacionais e portugueses consagrados. Senão, levávamos pau. Alguns liam por prazer, outros, por medo. Tenho cá minhas dúvidas se um adolescente de agora seria capaz de ler e entender o Dom Casmurro, do Machado de Assis. Em 1968, na quarta série do ginásio, por exigência do professor de português - o saudoso Fernando Costa Carvalho -, fiz um trabalho escolar, manuscrito, sobre esse livro. Um calhamaço de papel pautado. Tirei dez. Fechei o segundo semestre e não precisei fazer exame dessa matéria no final do ano. Dom Casmurro é, até hoje, das obras do mulato de Cosme Velho, o meu preferido.

Ler, ler, ler. Saber ler. Gostar de ler. Em simbologia, o livro é o símbolo do Universo: o Universo é um imenso livro. Afonso Romano de Sant’anna diz que quem lê está interpretando o mundo, que somos solicitados o tempo todo a ler o universo. Saint-Exupery, a respeito dessa leitura, do compromisso do saber com o ser, diz: "Vem alguém à minha propriedade e fala: ’lá é muito pobre. Só tem algumas pedras, algumas árvores e algumas cabras’. Ele não viu a minha propriedade. Aquilo era só o território. O principal estava invisível. O que faz a minha propriedade é aquilo que não se vê e que liga as pedras, as árvores e as cabras e me liga a tudo". Assim, a primeira leitura, a que só vê o território, tem um nível funcional, a leitura que faria, por exemplo, um agrimensor ou um advogado. Já a segunda, tem um nível significativo - é um diálogo, uma comunhão com as coisas.

"No princípio era o Verbo" - são as primeiras palavras do Evangelho de São João. "O Verbo, o Logos, é, ao mesmo tempo - segundo René Guénon -, Pensamento e Palavra. Em si, Ele é o Intelecto divino, o ’lugar dos possíveis’. Em relação a nós, Ele se manifesta e se exprime pela Criação, na qual se realizam, na existência atual, alguns desses possíveis que, enquanto essências, estão contidas Nele desde toda a eternidade. A criação é obra do Verbo. Ela é também, por isso mesmo, sua manifestação, sua afirmação exterior. Por isso, o mundo é como uma linguagem divina àqueles que sabem compreendê-la". Nestes tempos de ideologias materialistas e coletivistas, de mediocrização e de estupidificação, saber ler e pensar por conta própria ainda é um excelente remédio para não se perder a individualidade, a autenticidade.


Nota do Editor: Eduardo Antonio de Souza Netto [1952 - 2012], caiçara, prosador (nas horas vácuas) de Ubatuba, para Ubatuba et orbi.
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