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COLUNISTA
Eduardo Souza
03/10/2007 - 06h01
Caiçaras, uma espécie em extinção
 
 

Outro dia, o Sindicato de Trabalhadores Rurais promoveu uma “caminhada” pelas ruas da cidade, em protesto contra o desrespeito e a repressão do Estado às famílias de caiçaras e de não-caiçaras que ainda mantém suas propriedades em áreas do Parque Estadual da Serra do Mar. Velha contenda. As ações compensatórias prometidas há décadas não saíram do papel. Em lugar delas, ações policiais. Interferência no direito à propriedade. Em nome de um mundo futuro, ecologicamente equilibrado, esses agentes ou portadores de um futuro melhor, de um futuro hipotético, sacrificam as gerações atuais, crianças de hoje, famílias que necessitam da terra e do mar para a própria subsistência. As razões das preocupações ecológicas se mostraram desde então mais focadas na natureza em si mesma do que no bem estar do homem em sua relação com ela, ou seja, um arvoredo vale mais do que uma criança.

Velho dilema. Arrasta-se desde a década de sessenta do século XX. Do caiçara do norte do município dessa época, podemos dizer que vivia fora do circuito de trocas comerciais e suas relações culturais restringiam-se ao âmbito das povoações vizinhas. Aplicava inteiramente seu trabalho na produção e elaboração dos produtos que consumia: a mandioca, o milho, o café, o feijão, a banana, a cana e o peixe. A terra em que lavrava era infestada de saúva. Fabricava grande parte de seus utensílios indispensáveis. Quando necessitava de alguma mercadoria industrializada – roupa, remédio, sal, querosene ou alguma ferramenta – reunia alguns poucos produtos de sua lavoura ou pesca e os trazia, em canoas, para vender na cidade, enfrentando enormes dificuldades na travessia marítima.

Na grande maioria analfabeto, o caiçara era alienado de todos os modernos meios de comunicação. Até mesmo do rádio. Naqueles tempos, a vida cultural restringia-se à do grupo a que pertencia. Era religioso, católico, e apresentava profundo sentido de certos valores morais. Recusava sistematicamente a mendicância. Tinha o sentido de lealdade nas relações sociais, o espírito de autonomia e liberdade na condução da própria vida. Era comum a pesca de ameia e os mutirões na construção das casas, a maioria delas de pau-a-pique e cobertas com sapé. O elemento que começou a perturbar o equilíbrio na vida social foi a ação dos grileiros, atraídos pela valorização das terras próximas à faixa do que é hoje a Rio-Santos.

Uma minoria possuía títulos de posse da terra. Procurados por pessoas “expertas”, eram freqüentemente solicitados a vender esses títulos em troca de quantia irrisória face ao real valor da terra e à autorização oral de poder continuar vivendo na gleba. A quantia recebida era geralmente consumida em poucos meses e a autorização de uso da gleba suspensa pelo comprador que, a essa altura, conseguira o título de propriedade. Dessa forma, o caiçara ficava despojado da terra que lhe garantia o sustento e a moradia. Houve casos de a grilagem ter sido feita por meios violentos. Lembro-me do ocorrido com o falecido Sebastião Marcolino Leite que teve sua casa incendiada e respondeu, aos tiros recebidos, com uma simples espingarda de carregar pela boca. Marcolino defendeu sua família, a esposa e três filhos, e sua propriedade, na praia do Felix, de um bando armado, jagunços a mando de grileiro de terras. Muitos dos litígios naquela época poderiam ter sido resolvidos se o famoso livro 4-B do Cartório de Registro de Imóveis não houvesse sido destruído.

Penso que as administrações municipais pecaram por não ter feito, naquela época, um trabalho pedagógico e possibilitado assistência jurídica gratuita aos posseiros. O caiçara não tinha condições de dar qualquer valor a um documento legal cujas conseqüências concretas em sua vida não conseguia visualizar. As providências jurídicas necessárias lhe pareciam demasiadamente complexas e intimidativas e os custos processuais situavam-se fora de sua capacidade financeira. Na venda de suas terras, o caiçara foi facilmente explorado. Longe delas, do mar, de sua comunidade nativa, morando na periferia da sede do município, o caiçara aculturou-se, perdeu seus valores e símbolos que lhe davam identidade. Os que conseguiram permanecer em suas propriedades não imaginavam o que ainda estava por vir: a criação do Parque Estadual da Serra do Mar. Já essa história é mais recente, quase todo mundo a conhece, além de se repetir a mesma omissão da administração municipal nos interesses legítimos de uma coletividade. Seria interessante que se criasse uma ONG para defender essa gente, já que ações individuais são como dar murro em ponta de faca.

Encerro com palavras de Simone Weil que dizia ser o dinheiro um veneno que propaga a doença do desenraizamento: “O dinheiro destrói as raízes por onde vai penetrando, substituindo todos os motivos pelo desejo de ganhar. Vence sem dificuldades os outros motivos porque pede um esforço de atenção muito menor. Nada mais claro e simples do que uma cifra”. Os caiçaras venderam suas terras a preço de banana ou simplesmente delas foram desalojados por grileiros e, infelizmente, tornaram-se uma espécie em extinção, sem nenhuma entidade governamental ou não-governamental para protegê-la em seu habitat.


Nota do Editor: Eduardo Antonio de Souza Netto [1952 - 2012], caiçara, prosador (nas horas vácuas) de Ubatuba, para Ubatuba et orbi.
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