Mania do Luiz Moura tirar sarro do fato de eu ter participado de concurso de poesias, concorrendo com a saudosa Idalina Graça. Brinca com os meus 55 de quilometragem rodada. Como se ele fosse um Adônis. Não queria revelar, mas há indícios de que o amigo Luiz foi quem arranjou a vergôntea para que o José de Anchieta pudesse rascunhar os versos à Virgem, na areia da praia do Cruzeiro. Como a maioria dos amigos que tenho, adora pilheriar. Modo de ser ubatubano. Embora negue, o Luiz também concorreu com a Idalina Graça. Éramos adolescentes quando participamos dos concursos de poesias do colégio Capitão Deolindo. Dona Idalina, naquele tempo, já era uma simpática velhinha. Uma curiosidade: cheguei a datilografar-lhe alguns dos manuscritos do que viriam a ser seus livros. Outro que, na época, fez o mesmo, foi o Ademar Bordini. A Fundart está promovendo novamente o concurso de poesias que leva o nome de nossa poetisa. Fui informado de que a Fundação deixou de escanteio, na elaboração do evento, o coordenador e o vice-coordenador do Grupo Setorial de Literatura. Coisas da incurável Fundart. Espero, no entanto, que este Concurso de Poesias “Idalina Graça” seja novamente um sucesso e que os nossos bons poetas voltem a concorrer. Há muito não leio poemas da lavra de um José Carlos Góes, de um Jobàn, de um Gilmar Rocha, de uma Eliana de Oliveira, dentre outros. Aos leitores d’O Guaruçá, três poemas, logo abaixo. Um, de que gosto muito, da Eliana de Oliveira (III Encontro de Poesias – Cidade de Ubatuba –1981); os outros dois, de minha autoria, de bardo caiçara, bordalengo e bissexto.
Pausa Eliana de Oliveira Há dias em que amanhecemos buscando arco-íris na porta do quarto, rindo das sombras da noite passada, amando com fúria no nascer do sol. Há dias em que o universo está na sua boca serpenteando por todo o seu corpo preso nos seus cabelos e braços, me fazendo ser estrela da sua galáxia. Há dias em que acordo limpa arrumada e sem dono, que vejo seu sono bonito e sem transe, sem fogo sem fome... e te puxo as cobertas até o ombro. Há dias em que não nos vemos.
Canoeiro Eduardo Souza A minha gente o oceano – Como percorre o árabe Em seu cavalo arreado O deserto que lhe cabe – Cavalgava-o em canoas Espicaçando as ondas Com o aguilhão dos remos E se propícios os ventos Com velas de pendão De panos de sacos. Canoa não era para o mar aberto Como é o camelo para o deserto É navegação precatada, costeira Do vento sudoeste temerosa Demandava praia por perto. Canoa caiçara, canoa de índio Feita de um só tronco de árvore De cedro, angelim ou timbuiba. Se o escultor vê a escultura Que dentro da pedra dorme O caiçara via entranhada A canoa inteira na árvore Para ser parida à força Da enxó e do machado. Feitor de canoas, o caiçara Sabia de contemplar o tronco A largura da boca, o calado O tamanho da proa à popa. O que canoa não era ficava, O excesso, ex-árvore na terra, A gerar húmus na mata. Geometria, física, matemática: Sem ter freqüentado escola Só o primitivo saber da alma. Caiçara modo de ser caranguejo Praiano entre a terra e o oceano Caiçara era modo de ser devoto: O oratório no canto da sala Os santos medianeiros, as velas E a crença de que o mundo É barco de rumo incerto E que é certo que o pouco É muito com Deus e Nossa Senhora.
Infância Caiçara Eduardo Souza As casas sem trancas Entre mimos, dálias Quintais de galinhas E pés de jabuticabas. As crianças cresciam Nas praias, nas pedras E nas águas do mar. Os peixes passeavam Nos ombros dos homens Pelas ruas de areia. Mãos e olhos generosos Nas tardes de verão Na varanda dos ventos E nas barras da saia Da avó caiçara. O silêncio do meio-dia Na terra e no oceano. No estio Deus expiava Por cima dos telhados. Santos nos aposentos Sérios, impassíveis Em torno das velas E o capeta solitário A dançar no meio do pó Nos remoinhos das ruas. Ao revelado e ao oculto Respeito e reza de terço E quando a morte vinha Ficava no centro da sala De cravos e rosas ornada. E tudo assim se passava E ia e vinha sem pressa Cada coisa a seu modo Cada modo a seu tempo E feito sarro de pito Nos escavados da alma Grudou-se para sempre.
Nota do Editor: Eduardo Antonio de Souza Netto [1952 - 2012], caiçara, prosador (nas horas vácuas) de Ubatuba, para Ubatuba et orbi.
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