“As crianças desadoram os brinquedos que dizem tudo, preferindo os toscos nos quais a imaginação colaborou. Entre um polichinelo e um sabugo, acabam conservando o sabugo. É que este ora é um homem, ora uma mulher, ora é carro, ora é boi – e o polichinelo é sempre um raio de polichinelo”. Ao reler Monteiro Lobato – Mundo da Lua e Miscelânea – deparei-me com este texto que me fez lembrar dos brinquedos da minha infância caiçara. Brincávamos – fazendo de conta – com o chuchu, com conchas de mariscos que encontrávamos misturados à terra, no fundo dos quintais. Mariscos sempre fizeram parte do cardápio caiçara e o chuchu dava a torto e a direito em quase todas as cercas divisórias de quintais. Espetávamos palitos no chuchu para fazer de conta que era o boi, o cavalo etc. Com os mariscos montávamos uma fazenda inteira. Mas havia outros brinquedos e folguedos de que nunca me esquecerei. Contei a respeito e cheguei a mostrar alguns desses brinquedos a meus filhos, quando pequenos. Não se interessaram muito. Preferiram continuar com os comprados nas lojas, que não duravam mais de um mês. Brincar, com revólveres e espingardas feitos com raiz de ciosa, no bosque do seu Alexandre Radovitch; com carrinhos feitos com latas de leite Ninho, enchidas com areia; jogar taco (o baseball tupiniquim), bolinhas de gude nas ruas de terra da cidade, pião, feito com galho de goiabeira, bafo com figurinhas de jogadores de futebol; empinar pipa; fazer combates com marianeira, assopradas através de canudinhos, feitos com bambu; soltar balão; brincar de soldadinho-salvo; andar de canoa no rio Grande e pescar robalinhos no Poço das Pedras; jogar futebol no campinho do Lula e no da Vila; caçar passarinho com gaiolas, arapucas e estilingues – nenhum desses brinquedos eram comprados em lojas. Lembro-me de que, nas brincadeiras de mocinho, bandido e índio, a nossa imaginação era povoada pelos gibis, pelos filmes que assistíamos nas matinês de domingo do Cine Iperoig. Saíamos do cinema e ficávamos nas ruas e terrenos baldios, até escurecer, imitando os Randolph Scotts e Audie Murphys dos filmes de cowboy. Camoniboi. Mãos ao alto! Largue as armas! – o Toninho Sidônio adorava o Audie Murphy (talvez pelo fato de ambos serem baixinhos) e chegava a imitar os trejeitos do mocinho hollywoodiano. Grande parte do imaginário da minha geração é constituído pelo cinema, pelos gibis, pelas histórias e estórias, lidas e ouvidas. Não havia televisão naquele tempo. Energia elétrica era um luxo. Só para algumas casas, fornecidas por um gerador que era desligado no começo da noite. Minha avó contava histórias e estórias, sentada num banco, vestida de luto eterno, na beira do fogão à lenha. Algumas dessas narrativas nos deixavam, a nós, os netos, morrendo de medo. Na cama, ficávamos encolhidinhos, temerosos até mesmo das sombras balouçantes, projetadas nas paredes de taipa pela luz dos lampiões e das lamparinas. Criança naquele tempo tinha pavor de Saci e Mula Sem Cabeça. A criançada de hoje brinca na Internet, nos chats, nas páginas do Orkut, nas Lan Houses... Meus três filhos hoje são adultos. Um deles me deu um netinho. Deus me deu um amor no tempo de madureza, como diria Drummond. Estou fazendo curso intensivo para ser bom avô. É doce. A gente se lambuza todo de amor, de carinho. Dizem que avô é pai sem exigências, e avó, mãe com açúcar. O mundo de hoje não é um bom lugar para as crianças. Mas a gente dá sempre um jeito e luta para que se tornem homens de bem. Não é fácil. Mas o tal mundo melhor, o tal futuro melhor, do qual não podemos imaginar como será (a não ser os revolucionários socialistas e comunistas, que se consideram agentes e portadores dessa sociedade futura indefinível) depende do que fizermos hoje com nossas crianças. Devemos começar amando-as. Mesmo que não sejam nossas. Resgatando-lhes valores cristãos, que são diuturnamente desacreditados pela mídia, e deixá-las brincar. Lugar de criança não é só na escola. Mas as ruas...
Nota do Editor: Eduardo Antonio de Souza Netto [1952 - 2012], caiçara, prosador (nas horas vácuas) de Ubatuba, para Ubatuba et orbi.
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