Foi uma jacutinga quem lhe cagou ali. Isto foi em início de julho, quando ainda estava preta de madura. Caiu ali e ficou esperando o tempo a lhe dar raiz. Não tardou! Em meados de outubro sentiu o rompimento de sua casca. Junto a raiz saiu também um broto, uma folha e depois outra... Estava em terra de gigantes; olhava para cima e via pedaços do céu, que em dias lhe dava a luz e o calor e em outros lhe dava a água. Com a água e a luz sentia-se crescer e fortalecer. A seu lado, bem encostadinha, tinha uma pedra; a sua frente, um pouco mais afastado, um velho ipê-amarelo. Ali em sua volta todas eram antigas, pois estava em terra de gigantes; eram cedros, urucuranas, brecuíbas, titicuias, taquaruçus, brejaúbas e muitas outras. Não enxergava ninguém de sua espécie, apenas partes delas, tocos cortados a machado e facão. O que teria acontecido? Foi crescendo e se agarrando na terra, suas raízes cada vez mais se aprofundavam a procura de água. Foi crescendo e já ultrapassava a pedra ao lado. Ouvia cantos e coaxar, tiros e conversas. Os tiros lhe assustavam muito e em seguida a cada tiro um som abafado ao cair no chão. Eram pássaros abatidos que às vezes agonizavam, que às vezes esperneavam. Foi crescendo e seu destino era ver o sol; sabia que demoraria a ver o sol, mas era sua missão. Na terra de gigantes já estava a meia altura e agora começava avistar outras de sua espécie. Das maiores, dias ou outro, após o som de um póqui-póqui, arriavam lá de cima, vindo ao chão num tombo mortal. Que destino era aquele que não as deixavam ver o sol? Parecia ser um destino trágico e cruel; tinha medo daquilo, pois só acontecia com as de sua espécie. Um dia sentiu algo diferente a lhe sair junto às folhas; era uma totoa que, para sua surpresa, lhe presenteou com um buquê de flor. Sentiu-se importante, bonita e cheirosa. Das flores surgiram os frutos e dos frutos surgiram os passarinhos; eram sabiás, arapongas, tucanos, dorminhocos, jacus e jacutingas; todos lindos, coloridos e falantes; faziam a maior algazarra. Isso tudo acontecia nos meses de maio e junho; todo ano tinha essa felicidade. Com o passar dos tempos seus frutos ficavam até final de julho. Mau sinal! Os pássaros já não a visitavam mais. Aonde foram parar os passarinhos? Já fazia parte das gigantes, mas ainda não conhecia o sol por completo, conhecia apenas os seus raios. Seu destino era enxergar sua plenitude. Em breve seria uma gigante também, embora magrela, sem braços; apenas com seu corpo esguia, e vasta cabeleira palmada que desfolhava a cada estação. As estações foram longas, mas cada estação estava mais próxima ao sol. Seu sonho era ver o sol! Num amanhecer de dezembro ouviu aquilo que lhe punha medo; não era pica-pau, não era araponga e muito menos mono quebrando castanha no rochedo. Era um póqui-póqui distante. Primeiro um, depois outro, mais à esquerda, à leste e noroeste; vinham em bando. A cada póqui-póqui, um tombo, um gemido, um devasto. Conheceria o sol em muito pouco tempo, mais uma ou duas primaveras talvez; ou talvez nunca... Sentiu o primeiro golpe. Foi dolorido! Sentiu o segundo, o terceiro... Sua seiva descia, ao invés de subir. Inclinou e foi ao chão. Tentou olhar um pedacinho do sol, mas nem o sol lhe deu misericórdia; na última pancada o sol recolheu os seus raios; seu mundo apagou; estava no breu. Morreu igual às outras. Não conheceu o sol. A invasão depredatória, a extração indiscriminada do palmito, tanto pelo branco como pelo índio; pôs fim aos pássaros de nossa mata e põe em risco a própria existência de nossa Mata Atlântica. Respeitar a vida da Mata Atlântica é respeitar a vida de nossos filhos, netos e bisnetos.
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