Ela passou por mim, cantando. Cumprimentei-a e, mesmo sem conhecê-la, brinquei com o fato de estar tão alegre naquela manhã cinzenta, nestes dias que prenunciam o inverno. Retrucou dizendo-me que não havia motivos para não cantar, ou algo parecido com isso. Na verdade, o que me chamou a atenção foi o que me disse em seguida: que tinha vergonha de ser brasileira. Sim, foi o que disse aquela velha senhora, uma pessoa de aparência humilde, uma negra baixinha, gorda e de sorriso encantador. Tinha vergonha de ser brasileira por causa da violência, da criminalidade, da corrupção no Brasil. - Veja o senhor quantas coisas belas nós temos neste país. Deus nos abençoou com tudo isso, meu filho, e não damos valor - falava ao mesmo tempo em que apontava a paisagem da baía da cidade que se estendia à nossa frente. Ter vergonha de ser brasileira. Fiquei a pensar, depois que ela se foi, sobre quantas pessoas hoje têm vergonha deste país. Mas não vem ao caso. O importante é o fato de que essa senhora, de certa forma, reflete a indignação moral que uma grande parcela da população sente pela atual conjuntura brasileira. Pessoas que têm seus princípios morais fundamentados na religião cristã. Mas o que está ocorrendo é um processo: desta fase, em breve, esta senhora, como muitas outras pessoas, passará da indignidade à insensibilidade, à indiferença. A fase final, quando todas as instituições democráticas estiverem desmoralizadas, é a da aceitação passiva do totalitarismo coletivista como panacéia. O povo, insensível, anestesiado, aplaudirá. O processo de desmoralização do Legislativo e do Judiciário é indubitável. Por que o Executivo está incólume nesse processo? Por que não freqüenta a mídia com a mesma assiduidade e o mesmo enfoque? Ele é quem tem as chaves do cofre, é quem paga, é quem detém o poder de polícia e é quem comanda as Forças Armadas. Por que não há um combate efetivo e sem trégua ao narcotráfico, incluindo um posicionamento radical em relação às FARCs colombianas - que é quem alimenta o crime organizado no Brasil -, colocando o exército para agir efetivamente nas fronteiras da Colômbia, do Paraguai e da Bolívia? Tem muito caroço nesse angu. A quem interessa a desmoralização das nossas instituições democráticas? As esquerdas, há algum tempo, deixaram de lado a revolução armada. A estratégia de poder segue a cartilha de Antonio Gramsci, que me faz lembrar de um fato ocorrido recentemente em nossa cidade, o da extirpação daquela velha amendoeira da praia do Cruzeiro, querida por grande parte da população. Se, em vez de arrancá-la como fizeram - à luz do dia e com truculência espalhafatosa - inoculassem, na calada da noite, rotineiramente, um herbicida forte, a amendoeira em pouco tempo apresentaria os sintomas que justificariam sua remoção e teria a aceitação de todos. Estava podre, diria o povão, não tinha jeito mesmo, era preciso arrancá-la de vez. A esquerda no Brasil vem aplicando em nossas instituições (sempre em nome da democracia, da justiça social, da igualdade e de outros termos por ela manipulados semanticamente) veneno semelhante. A democracia no Brasil corre riscos de ser extirpada? Ah... aquela velha senhora seguiu seu caminho, cantarolando, apesar de indignada, na manhã cinzenta e fria.
Nota do Editor: Eduardo Antonio de Souza Netto [1952 - 2012], caiçara, prosador (nas horas vácuas) de Ubatuba, para Ubatuba et orbi.
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