Estava ali na popa de seu barco, em meio ao oceano, num parcel que há bem pouco tempo era o melhor pesqueiro que havia naquela região. Era um lugar conhecido, fácil de ser localizado, pois fazia alinhamento com o que aparecia da parte mais alta da ilha Anchieta e o pico do Corcovado, avistando-se dali, ao sul, a ilha dos Alcatrazes.
Com o pai aprendera a pescar e também conhecera os pesqueiros e os mistérios do mar. Dos peixes que pescavam, eram recolhidos somente os de maior porte. Dizia-lhe dos peixes pequenos: - Solte-os, filho, que no ano que vem estarão em ponto de peso e comércio. - Eram garoupas, sargos, badejos, miras... - São filhotes de peixes que, no futuro, irão garantir a sobrevivência e o conforto de sua família. - Mas em que época do futuro? Havia naquele tempo respeito pela natureza, e o peixe era farto, tanto no largo, quanto nas costeiras, nos parcéis, na beiras das praias e nas bocas dos rios.
Estava ali na popa de seu barco, pescando, com a linha n’água, molhando o anzol, usando iscas de carne de vaca, fígado de galinha e lingüiça de porco. Eram estranhas aquelas iscas, mas era o que dispunha para pescar. Sardinha, bonito, camarão, lula... Iscas que de há muito não se via, eram espécies extintas. Estava ali apenas para matar a saudade do mar e dos ventos. Entre pensamentos e recordações, sentira uma imensa saudade dos filhos. Onde estariam agora? Assim como sempre acompanhara seu pai no mar, gostaria que seus filhos estivessem ali a seu lado, ajudando-o na pesca. - Também não existe mais peixe! Pra que eles aqui?! - Resmungara em pensamento. Fazia muito tempo que não via os filhos, o mesmo tempo em que se dera o desaparecimento dos peixes daquelas águas.
Estranhou aquele pássaro pousar na proa do barco, parecia cansado, doente, sem forças. Há quantos anos não via um daquele! Uma gaivota. Talvez vinda do sul. Mas o que fazia ali aquele pássaro solitário? O que a trouxera até aqui, se não mais existem peixes para ela se alimentar. Vai morrer... Pegou um punhado de fígado de galinha e jogou para a ave esfomeada que, deslocando-se com dificuldade do lugar em que estava, apoderou-se do alimento. Rejeitou-o no começo, mas a fome era maior e o pedaço de fígado desceu goela abaixo. Depois comeu também a lingüiça e um pedaço de gordura. Arrepiou as penas e acomodou-se, encorujada, admirando o pescador. Certamente a pobre gaivota também pensava no que um sujeito como aquele fazia naquele mar sem peixes. Sabia que o instinto daquele homem era viver no mar e sobreviver do mar. Ganhou mais uma porção de fígado, porém preferiu a lingüiça. Comeu e voltou à mesma posição.
O pescador agora conversava com ela e enchia-lhe de perguntas: - Há quanto tempo não vejo uma de você! De onde você veio? Onde estão os peixes deste mar? Que fim levou os camarões, as lulas? Que fim levou as corvinas, que aqui era coisa por demais? Cadê as garoupas deste parcel? Onde foram os cações? - Perguntava o pescador à gaivota desnutrida e tristonha.
A gaivota, acomodada ali no convés, olhava-o e, num imóvel silêncio, passou a responder-lhe e a julgar-lhe os questionamentos. Era simples responder àquelas perguntas, era fácil dizer-lhe que fim levara os peixes e as espécies do mar. Sabia responder a tudo com a maior facilidade e, em pensamentos, foi dizendo ao pescador: - Eu sou a última de minha espécie e vim dos mares gelados. Vou lhe dizer uma coisa, pescador! Você se lembra do respeito que seu pai falava que se havia de ter com os peixes, com o mar e com a natureza? Você esqueceu esse respeito! O respeito foi gradativamente acabando, a ganância, por parte das companhias pesqueiras, com seus potentes barcos e equipamentos eletrônicos, foram aniquilando as espécies de peixes, de moluscos e de crustáceos que existiam no mar. Quantas vezes eu vi quilômetros e mais quilômetros de rede sendo estendidos no mar, na pesca da corvina ovada? Quantos cações foram mortos apenas para retirar-lhes as barbatanas, e o resto do corpo sendo jogado ao mar, como se fosse lixo? Quantos atuneiros quebraram a cadeia alimentar dos peixes? Quantas garoupinhas, aquelas chamadas de morceguinhos ou tiezinhos, pesando 100, 200, 500 gramas, sem valor e peso comercial, foram tiradas sem piedade das costeiras para serem vendidas? Quantos poluentes, quantas misturas químicas, quanto lixo foi jogado ao mar? Pois é, pescador, não se teve respeito com o mar e com a vida do mar. Não respeitaram as barrigadas ovadas, não respeitaram as garopetas, não respeitaram o mar!!! Vocês, pescadores, não se preocuparam em criar reservas marítimas, que naturalmente já existiam (as baias), para manter e preservar a vida marinha. Não se preocuparam em criar recifes artificiais para a procriação e o crescimento dos grandes peixes, sendo que seria possível até mesmo a criação de plataformas turísticas para pesca esportiva. Enfim, pescador, suas perguntas estão respondidas.
Os restos das iscas de fígado de galinha, de lingüiça e de carne de vaca foram jogados ao mar. A manivela foi rodada e o puque-puque, soltando fumaça preta no ar, segue o rumo do sol poente. A gaivota, empanturrada, não conseguira digerir a lingüiça e o fígado de galinha que comera e voa num vôo sem volta... Morrera a última gaivota, jogada também naquele mar sem vida. Daquele homem, sobraram-lhe tão somente o instinto, seus anzóis, suas redes, seu barco e a saudade dos filhos que talvez pudessem, quem sabe um dia, estar no mar, na pesca, na liberdade.
Do mar só sobrou a água salgada, as pedras nas costeiras, as areias nas praias. Não houve respeito e consciência. Pescaram na desova, pescaram os alevino, pescaram a cadeia alimentar, pescaram o respeito, pescaram o direito do filho e neto do homem de conhecer as vidas marinhas.