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Ano 1 - Nº 8 - Ubatuba, 17 de Maio de 1998
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Contos

· A fila
    Ricardo Yazigi
    ryazigi@iconet.com.br

Feriadão. O sol escaldante pareceu animar os habitantes da cidade grande a correrem para o litoral.
Quatro dias inteiros para gozar na praia. Água refrescante, vôlei, música, sorvetes, gatinhos e gatinhas a serem paquerados. Isso sim que é vida.
Solteiros e solteiras, casados e casadas, amasiados e amasiadas, velhuscos e velhuscas, estudantes, trabalhadores e vagabundos, brancos, amarelos e negros, ricos, pobres e intermediários; parece que todo mundo teve a mesma brilhante idéia: curtir um feriadão no litoral.
Logo nas proximidades do início da estrada que levaria os felizes turistas ao paraíso, já se notava o congestionamento. Apesar do trânsito, o ânimo dos ingênuos era contagiante.
- Esse atropelo é só no comecinho da estrada - dizia o velho de boné vermelho a seus quatro acompanhantes, que mesmo apertados entre caixas de isopor, varas de pesca, malas, bolsas e cotovelos, mantinham o bom humor.
- Logo, logo, vamos chegar e faturar as garoupas e badejos que estão ávidos por serem assados - retrucou sarcasticamente o amigo que sentava no banco da frente.
- No máximo em dez minutos vamos se livrar desse trânsito - finalizou otimista, o velho do boné vermelho.
No carro da frente o ânimo não era diferente.
- Vai ser um belo feriado, não vai querida? - disse o jovem recém-casado para o imaginável amor de sua vida.
- Claro que vai, querido, vamos aproveitar ao máximo - respondeu a esposa novinha em folha.
Aos poucos os carros começaram a diminuir a velocidade até parar.
- Parece que aconteceu alguma coisa lá na frente, parou tudo - disse o velho do boné vermelho.
- Não há de ser nada, respondeu seu amigo do banco da frente - logo vamos voltar a andar.
Duas horas depois e nada da fila andar. De repente, vem um policial avisando: "Pessoal o negócio está complicado lá na frente, é melhor vocês relaxarem".
O aviso do policial foi como uma ducha de água fria na cabeça dos potenciais turistas.
- Acho melhor a gente sair do carro - disse com certa decepção, o velho do boné vermelho.
- Ânimo pessoal, é até melhor começar a pescar em final de tarde - tentou animar o amigo do banco da frente.
O jovem casal do carro da frente também resolveu respirar novos ares: - Vamos andar um pouco, querida - disse com certo desânimo o marido novato.
No carro que estava ao lado do carro do velho do boné vermelho, um jovem com orelhas de abano, pensava com os seus botões: "Se essa droga desse congestionamento não terminar logo, vou cumprir com meu objetivo por aqui mesmo".
Observando o jovem das orelhas de abano estavam duas lindas garotas, uma loira, outra morena, num carro roxo esporte.
- Aquele rapaz tem orelhas estranhas, mas de resto parece bem namorável - disse com certo assanho, a loira.
- Não sei não, parece ter um rosto sofrido - retrucou a morena.
- Realmente, parece estar com raiva de algo - respondeu a outra.
Atrás do carro das garotas um casal idoso trocava farpas.
- Bem que eu te disse, seu velho teimoso, vir à praia em feriado é coisa para jovem cabeça oca, imagina só enfrentar essa loucura. Preferiria estar em casa fazendo meu crochê - disse a velha.
- Você não passa de uma velha rabugenta. O dia está lindo. Ah, e se eu fosse jovem ia atacar aquelas duas gatinhas daquele carro roxo. Já ia chegar ao litoral com compromisso - retrucou o velho.
- Sai para lá, seu velho caduco, você não consegue mais nem distinguir uma periquita de um buraco de fechadura, e agora vem dar uma de machão - respondeu a velha com raiva.
Neste instante, ouve-se um grito:
- Socorro, socorro, meu carro está pegando fogo.
Todos que estavam ao alcance do grito resolveram correr em direção ao desesperado. Em poucos segundos apareceram dezenas de extintores de incêndio que apagaram o fogo com certa facilidade.
- O que aconteceu? - indagou o velho do boné vermelho ao jovem de orelhas de abano.
- Sabe tio, acho que dormi com o cigarro aceso na boca, aí ele caiu e botou fogo no estofamento do banco - respondeu ainda atordoado, o rapaz.
- Você está precisando de alguma coisa? - perguntou a loira do carro roxo, com segundas intenções.
- Não, obrigado pela preocupação, obrigado mesmo - respondeu o rapaz das orelhas de abano, já com um ânimo maior.
- Esse moleque deve ser um idiota - comentou o jovem recém-casado à sua amada.
- Que é isso, amor. Isso poderia ter acontecido com você - retrucou a esposa novinha em folha.
- Você não me conhece, não sou um débil mental. - encerrou o jovem.
Depois do incidente sem conseqüências, todos já haviam saído de seus carros e procuravam agora o que fazer. O bando do velho do boné vermelho abriu uma mesa de pôker, o casal de velhos parou de trocar farpas e resolveu jogar damas, o casal recém-casado fez amizade com um corretor de imóveis que mostrava-lhes fotos de lindas casas do litoral, a loira continuou num animado papo com o rapaz das orelhas de abano, a morena que estava com a loira, não quis ficar segurando vela e partiu para ver as fotos que o corretor de imóveis mostrava ao jovem casal.
As horas passavam e a fila continuava estática, com isso as coisas iam evoluindo.
- Quadra de damas - gritou o velho do boné vermelho mostrando, com orgulho, suas cartas aos companheiros - até que enfim ganhei uma boa - disse sorrindo e recolhendo as fichas improvisadas com palitos de fósforo.
- Sabe, gatinha - disse o jovem das orelhas de abano à loira - eu vou te contar um segredo, eu vim para o litoral para cometer uma loucura, eu estava arrasado, deprimido e sem nenhum objetivo na vida, cheguei a pensar em suicídio, por isso tentei o incêndio, mas depois me arrependi e agora conheci você. Foi a melhor coisa que me aconteceu. Você é um anjo que me mandaram dos céus - continuou o jovem beijando apaixonadamente a loira.
- Essa casa que vocês gostaram está uma pechincha - disse o corretor ao jovem casal - tenho certeza que quando a virem ao vivo vocês vão comprá-la. Quando chegarmos ao litoral, vou levá-los para conhecê-la - continuou o corretor dando uma piscadela para a morena do carro roxo, que o observava de forma afetiva.
- Sabe velha, há quantos anos não jogamos mais damas, talvez há uns quinze anos, talvez mais. Bem que poderíamos voltar a fazer coisas que nunca mais fizemos, que tal? perguntou maliciosamente o velho que obteve um sorriso da velha, não menos malicioso.
As primeiras estrelas começavam a aparecer, quando o guarda veio avisando: "Pessoal, boas novas, a estrada foi liberada, voltem a seus veículos, que a fila vai andar."
- Esse guarda tá louco, e não vamos terminar nosso joguinho? - perguntou bravo o velho do boné vermelho - nós é que não vamos voltar para o carro, não é mesmo pessoal?
- Éhhhhh!!!.
- Daqui eu não saio - disse o jovem das orelhas de abano.
- Se você fica, eu também fico - respondeu solidária a loira.
- Você não vai querer ir embora justo agora que estamos nos entendendo tão bem, não é? - perguntou o corretor de imóveis à morena.
- É claro que não, meu pombinho.
- Sabe velha, é a primeira vez nos últimos anos que nos damos tão bem.
- E agora que está aparecendo as estrelas está ficando mais romântico. Vamos ficar aqui? - respondeu a velha com ânimo.
Apesar da estrada ter sido liberada, a fila continuou parada.
- Pessoal, vamos circular senão prendo todo mundo - disse o policial com autoridade.
- Prende é?
A madrugada veio e de repente, na fila ainda estática, ouve-se um grito.
- Quadra de ases! Quadra de ases!
- De novo?!!! Eta policial rabudo... - revolta-se o velho atirando seu boné vermelho ao chão.Fim do texto.
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