· Vocês viram Galalau?
Herbert Marques
hmarques@iconet.com.br
Galalau foi criado por Aquedeu, que por sua vez era filho de mãe solteira, cujo nome nunca ninguém soube, mas atendia por Enrugada.
Enrugada fazia balaio para vender aos pescadores, na realidade não vendia, trocava por peixe para levar para seus bruguelos, oito no total, mais um na barriga, todos de pais desconhecidos, ou pelo menos conhecidos só dela, pois nem a vizinhança conseguia identificar o entra e sai naquela pachoça na beira da praia, mesmo com o mais brilhante clarão das luas cheias das noites de primavera e verão.
Daquela trampa toda de moleques, Aquedeu sempre foi o que mais se destacou, não só pela sua habilidade com o bodoque, remo e anzol, como pela facilidade que adquirira, logo cedo, em convencer os pescadores da redondeza de que peixes destinados à venda ou à salga, deveriam ser levados por ele para sua mãe fazer almoço para seus irmãos. Mesmo quando a pesca era pouca e os homens do mar ameaçavam qualquer recusa, a insistência do garoto saia vencedora e lá ia para sua pachoça com a comida garantida.
Certamente iria fazer falta quando taludo e emprumado, saísse para fazer seu mundo e criar suas crias, embora Deus pudesse lhe ajudar substituindo o arrojado e pródigo filho por outro que, se não tivesse no cueiro, poderia estar para vir, ou ser feito. Pai era que não faltava, filho também.
Na realidade não demorou muito para isso acontecer. Aquedeu, já com idade de procriar, arrumou uma rapariga de tenra idade, empernou na macia areia da praia, lavaram-se nas ondas do mar e a seguir, após embuchada e posteriormente parida, começou a entrar no ritmo da Enrugada, embora sempre com filhos de um só pai. Exemplo bastava um.
Um dia Aquedeu quando de volta para sua pachoça, já bastante apinhado de gente, fruto de duas famílias altamente procriadoras, ouviu um barulho estranho e a seguir, vulto de um menino nu, esquálido, ligeiramente arqueado para a frente. Ao se aproximar dele, ouviu uma voz fraca, porém bem audível, afirmar que havia chegado do outro lado do mundo e pretendia morar com ele.
Aquedeu não entendeu direito o que ouvira e ao solicitar que repetisse, o estranho menino confirmou seu intento, desta feita completando chamar-se Galalau e dando a mão para seu protetor.
A partir deste momento nascia a mitológica figura do menino que nunca ficou velho, nunca comeu, bebeu, transou ou fez outras necessidades, e mais, somente conversava, e era visto por Aquedeu.
Galalau sempre foi uma mão na roda para Aquedeu. Era privilegiado com sua inteligência, sabia de todas as coisas que aconteceram estavam acontecendo ou iriam acontecer e mais, tinha perfeita intuição para não deixar o protetor passar nenhuma dificuldade ou necessidade. Sempre estava atendo aos passos do companheiro, tirando-o de qualquer enrascada, fosse do tamanho que fosse, sempre na condição de invisível para todos que circundavam Aquedeu, tornando-o a pessoa mais famosa de toda a região.
Na praia, quando se posicionava no cabo da rede para puxá-la, lá vinha um achando que a dupla não esta fazendo força já que ela deveria ser dobrada, na partilha dos peixes sempre havia alguém que alertava não haver necessidade de tanto pescado tendo em vista ser Galalau invisível e nessa condição, não havia necessidade de comer, nas rodas de conversa, sempre havia alguém que mandava perguntar ao Galalau isso ou aquilo. E assim foram passando os dias, meses, anos.
Finalmente Aquedeu resolveu se revoltar. Acordou disposto a questionar por que Galalau somente aparecia para ele, criando com isso um constrangimento que já beirava a porta de uma década, causando-lhe, na maioria das vezes, sérios aborrecimentos como o abandono de sua companheira, enciumada com aquela situação e acreditando mesmo na insanidade mental do marido. Certo dia juntou as trouxas, os filhos e nunca mais apareceu.
Mas aonde estava o Galalau? Na casa não estava, no terreiro também não, muito menos na praia. Galalau havia sumido.
E até hoje, lá pelos lados do norte, Aquedeu vaga pelas praias, costeiras e as vezes pelas matas próximas a procura de seu fiel companheiro Galalau.
 
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· Crianças de Ontem
Eduardo Antônio de Souza Netto
articulista@ubaweb.com
No quintal da casa em que nasci, havia um rancho onde eram guardadas diversas quinquilharias e algumas ferramentas de uso doméstico, de meu pai. Entre o rancho e a casa, o quintal. Da última vez em que lá estive, antes da velha casa ser demolida, esse mesmo quintal, onde passei grande parte de minha infância, pareceu-me tão pequeno que, depois do espanto, passei a entender melhor certas questões relacionadas ao espaço e ao tempo. Hoje ando bulindo com a tal da metafísica.

O quintal da velha casa na Dr. Esteves da Silva, a menos de cem metros do Atlântico, serviu-me para grandes aventuras em que, despido dos medos naturais da infância daqueles tempos, enfrentei sozinho tudo quanto foi bandido, os inimigos do bem, animais ferozes e as ameaças vindo do espaço.
As plantas de mamãe, as folhagens do quintal, ora eram a savana africana, e eu, Tarzan; ora eram as planícies do Texas e eu bancava o Audie Murphy, dando tiros até não poder mais. No velho rancho, por sua vez, usando as rodas de uma velha bicicleta, dirigi meu submarino contra navios nazistas ou, então, pilotei meu caça contra a demoníaca Luftwaffe, em pleno espaço aéreo da casa de meus pais.
Não havia televisão naqueles tempos. O cinema fazia a cabeça da criançada e também as histórias do bem sempre vencendo o mal, contadas pelos mais velhos. Era um mundo cheio de mistérios, de medo do desconhecido, das assombrações que perseguiam crianças malvadas. Talvez, por isso, tenhamos crescido respeitando determinados valores herdados de nossos pais, com muitos receios de uma punição divina, com mais humildade em relação ao próximo; todavia, nunca deixamos de ser arteiros. Agora, jamais, em toda a minha vida, poderia supor que um dia ouviria dizer que duas crianças, mesmo sendo nos EUA, onde quase tudo é possível, pudessem planejar, fria e meticulosamente, o assassinato da professora e de alguns de seus coleguinhas de escola, usando um rifle do pai. Diante disso só posso dizer: como foram bons os tempos de minha infância e como era vasto e, ao mesmo tempo, seguro, aquele quintal em que me criei.
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