Náutica
A volta da família Ceccon
Ricardo Faria - Editor do Jornal Hollyday Tour
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Em janeiro de 1.992, noticiamos a saída do veleiro Rapunzel e sua tripulação: Marçal, Eneida, os filhos Clarissa e Marcelo. Partiam do Saco da Ribeira, em Ubatuba, SP para uma viagem aventura e ao mesmo tempo a consolidação de uma nova maneira de viver.
O barco (um Tropic 1.200, 42 pés, casco em aço, 13 toneladas e área vélica de 92 m2) foi especialmente fabricado pela Dimieper Metalúrgica Indústria e Comércio, de Osasco, SP, cujo proprietário, Luiz Belloli Neto é um entusiasta da náutica.
Reencontramos Marçal e sua família, em dezembro de 1.997, novamente no Saco da Ribeira, desta vez para nos relatar uma pequena parte da aventura contida num livro, escrito pelo próprio Marçal.
O navegante nos recebeu a bordo: "na verdade não houve um plano de viagem, mas a mudança de um estilo de vida que requer algo especial e detalhado em todas as áreas. Desde a família, o trabalho, escola e o próprio barco. Na hora em que se sai, não fica nada para trás a resolver, que incomode e possa transformar um sonho em pesadelo."
A primeira dificuldade: "um dos piores momentos foi aqui, na altura de Vitória, ES, pegamos uma tempestade que durou quatro dias. A nossa pouca experiência, na época, dificultou. Em contra partida, tudo que veio depois tinha uma comparação com o fato inicial, facilitou muito."
A esposa e os filhos: "nós navegamos desde 76, em 81 começamos no mar, com pequeno veleiro, aqui no Saco da Ribeira, nos fins de semana. Fomos levando a coisa a sério, lendo e estudando muito a respeito do assunto. Viajávamos para Santos, para Angra. Nossos filhos praticamente nasceram navegando, estavam ambientados e se adaptaram com a viagem a ponto de não querer voltar."
O percurso: "foram 4 anos e três meses até ancorarmos na Ribeira, em março de 1.996, e aqui estamos morando no Rapunzel, é como continuar viajando. Do Brasil tomamos o rumo do Caribe, percorremos as ilhas e voltamos para a Venezuela, Colômbia e Panamá. Cruzamos o canal e fomos para as Ilhas Galápagos, depois para a Polinésia Francesa, Marquesa. Tuamoto, Thati e Tonga, um local especial, no Pacífico, por não ter sido colônia de país algum. A cultura do povo é original, autêntica, diferente de tudo que conhecemos. Com curiosidades como: homem e mulher não podem andar de mãos dadas, na rua. Não se pode andar sem camisa, em público. Existe uma religiosidade levada a sério. Todo mundo lá tem medo de "terrolas" (diabos), mesmo os adultos não saem à noite por temor. Algo muito primitivo.
De Tonga fomos para as Ilhas Fiji, umas 500 milhas. Depois, para Vanoato e dali para o norte da Austrália, passando pelo estreito de Torres, Bali, na Indonésia. Entramos no Índico e paramos em 3 ilhas, Cocos (Austrália), Chagos e Madagasgar. Navegamos para a África do Sul, contornamos o Cabo da Boa Esperança e entramos no Atlântico. Viemos para a Ilha de Santa Helena e daí para o Brasil. Eram passados 4 anos e meio praticamente."
O dia a dia: "bom, a Clarissa saiu daqui no primeiro ano de faculdade, trancou a matrícula e fez cursos por correspondência numa universidade americana de matérias relacionadas com a área dela. O Marcelo estava no final do primeiro grau, interrompeu e fez alguns cursos de informática. Ela reassumiu a faculdade, está agora terminando o terceiro ano e ele está fazendo o supletivo para recuperar o tempo."
Morar num veleiro: "fora do país é comum ver famílias morando a bordo. Aqui se é visto como uma espécie de cigano, de vagabundo e na maioria das vezes como milionário. As pessoas não imaginam as dificuldades, temos menos energia elétrica, água e dinheiro. Somente sobra o tempo para viver de uma maneira meio espartana, nada de abastança conforme o mito. É muito mais barato viver no barco do que em terra, é uma opção que simplifica as coisas. O grande atrativo é a auto suficiência . Quando ancorado não se deve nada a ninguém, se colhe água de chuva, se viaja a vela. Nossa energia elétrica vem do sol e do vento, temos um carregador eólio e placas solares. Nossa despesa se resume a alimentação e um pouco de transporte fora do barco. Se gasta muito com comunicação, via rádio, pelo sistema móvel marítimo para qualquer lugar do planeta. Foi o que usamos durante a viagem. Hoje uma ligação de 3 minutos custa 7 reais. Depois dos 3 minutos, cada minuto dois reais e cinqüenta. Contamos com os telefones dos amigos que nos passam os recados o que ajuda muito."
Afirma o Marcelo que saiu com 14 anos de idade e voltou com 19: "foi uma mudança difícil no começo. Perdi o contato com os amigos daqui. E tive que conquistar novos. Na volta reencontrei o pessoal mais velho (20 anos), acho que foi até bom. O que marcou mais foi Chago, no Índico, abaixo da Índia, entre a África e a Austrália. Onde mais me dei bem foi em Tonga, conheci muita gente sincera."
A esposa Eneida foi funcionária da Caixa Econômica Federal, agência de Caçapava, SP, afirma: "foi muito interessante, novos rumos, aprendendo coisas. Vendo povos com filosofias diferentes de vida. Eu gostei bastante da Polinésia Francesa. Achei um povo muito bom, muito amigo. Quando se chega lá eles praticamente te adotam. Dão tudo que têm e não pedem nada."
Voltando para Marçal Ceccon: "nossa idéia é continuar vivendo no barco, enquanto for possível, reagindo a cada acontecimento diário, lançando e içando âncora. No Caribe, por exemplo, a estrutura é muito boa e se pode usar é numa emergência, inclusive tirar o barco da água, fazer um conserto, importar peças, mão de obra com qualidade. E excelentes serviços de luz, telefone, comunicação via satélite, atendimento médico. A África do Sul, para mim, possue a melhor estrutura em termos de recursos e é barato se comparada ao restante, daí termos ficado quase um ano em marinas. Para se ficar numa boa sai em torno de 120 dólares mensais e se pode usar todas as instalações, inclusive piscinas, clube, tudo. É um bom lugar. Já no Caribe é caro, nos Estados Unidos também.
Na costa brasileira somente usamos as marinas para abastecer ou passar um dia. Em geral estamos ancorados. Tem marinas regulares, mas são caras. Gira em torno de 59 reais por dia a vaga. E não existe um bom atendimento se comparado ao restante do mundo. Uma coisa boa que não existe aqui e vimos na Austrália, na África do Sul e numa porção de lugares é a marina pública para visitantes, o que chamam de cais de cortesia. Onde se fica por um período de graça, digamos um mês. Depois disso, paga-se uma taxa simbólica, tipo um dólar por dia. Na marina da Glória, no Rio de Janeiro a idéia era essa. Infelizmente não é, não funciona. E tem mais, as marinas públicas estrangeiras estão em locais urbanizados, com banheiros limpos, centro de compras, bancos. Uma espécie de praça pública. A população local usa como local de recreação, muito agradável. Se sai do barco, senta-se numa mesa para escrever cartas. Acontecem feiras, shows de música. É o que eles chamam de water front, um lugar de lazer, com pessoas cem por cento confiáveis. Aqui no Brasil não existe em lugar nenhum um cais de cortesia nesses padrões. Faz muita falta. Aqui se chega e tem que ir ou para um iate clube se associado, não é meu caso. Mesmo nas poitas não pode. Passar uma noite fica difícil.
Lá fora você é bem recebido. Um cara que está no mar merece consideração, te abrem as portas, mesmo nas marinas privadas e iates clubes, que possuem um período de carência, digamos uma semana, antes de começar a pagar. O bom disso é que se cria no lugar um ambiente de boa vontade, uma cultura náutica. O mar é um exemplo de solidariedade e os meios ligados têm que transmitir isso. Todos, mesmo as autoridades, devem inspirar confiança, esse respeito pelos navegantes. Tanto faz se a pessoa é da marinha de guerra, mercante ou um amador, como eu. Essa é uma das diferenças marcantes: o amador é tratado em todos os portos como um oficial. Eu quando ia dar entrada nos papéis do barco era tratado como comandante de uma embarcação, não interessando o tipo do barco. Ao contrário daqui, onde dá impressão que a gente está brincando de navegar, se espera nas filas, uma discriminação com aqueles que "teoricamente" estão se divertindo.
Se esquecem que passamos muito mais tempo na água do que a maioria. Lá fora existe um reconhecimento que nós somos, na verdade, uma presença muito maior e mais constante no mar . Somos um meio de fiscalização muito mais eficiente do que qualquer marinha do mundo pode ter em operação. Quando que alguém vai ter, como aqui no Saco da Ribeira, quatrocentos barcos à disposição para fiscalizar, digamos a Ilha Anchieta? Estamos aqui dia e noite, no fim de semana o número aumenta. É uma presença em massa de gente habilitada, de bom nível que lá fora tem reconhecimento. O esporte náutico é tido como uma força de reserva, para ajuda e não para brincar. Acho que por isso somos tratados com muito respeito e consideração lá fora. Meio diferente daqui, nosso próprio país."
O futuro: "durante a viagem fizemos vários tipos de serviços, reparos, tudo que aparecesse. Voltando, montamos uma velaria na Give Way para reparos em velas, capotas e surpreendeu pelo volume de trabalho. Temos uma casa alugada. E a maior vantagem é que não necessitamos de muito dinheiro para viver da maneira que escolhemos. Tem ainda o rendimento do livro. Estou terminando o segundo volume, uma complementação. Fizemos um vídeo que está vendendo bem, a Eneida está terminando o livro dela. Faço palestras e com um pouco aqui outro ali, vamos vivendo."
Mensagem: "tenho visto bastante gente planejando e até comprando barco, preparando-se para sair em viagens. E também gente voltando do meio do caminho. É preciso planejar melhor. É simples. Não carece de grande coragem e muitos recursos financeiros, nada de especial. Somente um bom plano é fundamental. Não se precipitar, fazer a coisa direito. De repente, pode até ficar mais barato viajar pelos mares do que morar numa cidade qualquer. Sem dúvidas, é muito mais saudável e, principalmente, pela liberdade que se ganha, nos descobrimos isso."
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