Olhou para o relógio, o dia passou e não rendeu, ela não conseguiu fazer nada do que havia planejado. Gostaria de ter caminhado meia hora na esteira, estudado português, inglês e mandarim por quatro horas ininterruptas, ter ido à feira e comprado girassóis e pimenta do reino, ter continuado a tecer aquele cachecol amarelo, azul e vermelho. Olhem para ela, está descabelada, comendo um bauru com suco de graviola, amarrou o cabelo em um coque para disfarçar aqueles fios brancos que teimam em aparecer, calçou o sapato de sua mãe pois a porta do armário está emperrada e não conseguiu resgatar um par de chinelos sequer. O telefone tocou, correu para atender pensando ser o namorado e era uma senhora perguntando se ali era a clínica do Dr. Mariano, agora foi para o banheiro escovar os dentes e a pia está entupida. “Caspita”, resmunga a descendente de italiano, alemão e português. “Hoje não é meu dia, devia ter ficado deitada”. Devia sim, mas levantou porque não suportava o batuque estridente da obra que a vizinha do 501 resolveu fazer em um apartamento perfeito, novinho em folha. “Com tanta gente sem teto, casas sendo arrastadas pelas chuvas, essa dona vem e quebra tudo”, pensava, enquanto procurava a coleira da cachorrinha temperamental pela casa, que a essa altura estava bem acomodada debaixo dos lençóis limpíssimos, recém saídos do varal. Saiu sem o cachorro, com a primeira roupa que viu no cabideiro, com o sapato um número menor que seu pé, com farelos nos dentes, e riu de si mesma, e do quanto a vida pode ser imprevisível e engraçada, uma vida de ponta cabeça, estilo l80 graus.
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