Havia algo de estranho em Lia. Até hoje não sei seu nome, apenas a conheci por esse apelido. Lia pra lá, Lia pra cá. Era uma mulher muito interessante, comunicativa, carismática. Em alguns momentos eu a percebia longe, como se não estivesse totalmente presente. Não sei se outras pessoas observavam seu comportamento, mas eu, que não perco o hábito, ficava atenta. Eu sabia que ela escondia algo, sabia. Um dia convidei alguns amigos, que trouxeram outros amigos para uma reunião informal aqui em casa. Deixei, além do banheiro social, o da suíte à disposição dos convidados. Era um grupo de vinte e poucas pessoas aproximadamente, que espalharam-se pela casa. Alguns no quarto de TV, outros batiam o velho e bom papo cabeça na cozinha, havia gente na sacada, cada grupo para um lado. Fiquei sentada no sofá da sala conversando com duas amigas, distraída, alegre com a festa que corria bem. Parecia que todos estavam descontraídos, eu queria tirá-los da monotonia do cotidiano. Adoro isso. Se o tédio crava na carne, a vida parece arrastar-se. Não suportaria. Depois de muita música, conversa, risos, diversão, o pessoal, aos poucos, foi indo embora. Cada um com seus compromissos, responsabilidades, ainda havia os que iriam a mais uma festa no dia seguinte. Disposição! Sábado de manhã: acordei com uma dor de cabeça incômoda. Foi aquele vinho, eu abusei, passei um pouco da conta. Comecei a ajeitar a casa, estava tudo jogado, efeito tornado. Juntei várias coisas para guardar no armário. Quando o abri, após vasculhar bastante, notei que alguns objetos haviam desaparecido. Algumas roupas, uma echarpe vermelha, minhas pulseiras preferidas, da época de minha formatura. Por isso eu não esperava. Minha desconfiança em relação às pessoas nunca foi ligada a bens materiais. Pensei e repensei sobre quem poderia ter tamanha ousadia. Lembrei de Lia, com seu jeito estranho, mas não pensava que pudesse chegar a tal ponto. Liguei para uma amiga que a conhecia melhor. Sabia de suas origens, de seu passado, conhecia um pouco mais sua intimidade. Gaguejou um pouco e confirmou que a mulher enigmática havia furtado objetos em alguns lugares por onde passara. Pena que não me avisou antes. Ela não era assalariada. Vinha de família abastada, trabalhava e era bem remunerada, poderia comprar seus objetos à vontade. Mas cleptomania é doença e ela sofria desse mal. Só fiquei sabendo naquele momento, quando Yanla resolveu compartilhar. Tarde demais, até os colares indianos que ganhei de meu irmão haviam sido levados. Passados alguns dias, encontrei Lia em um bar movimentado. Ela estava com um de meus brincos, e com a echarpe que eu adorava. Sorriu, me cumprimentou como se nada houvesse de errado. Para ela, nada estava errado. Tudo a pertencia. Ela me olhava, passava suas mãos pelos brincos e sorria. Parecia despreocupada. Ela colecionava pertences alheios, que agora eram seus. Seu prazer era tocá-los na frente de seus ex-donos. Ela ria, dançava, seduzia, e eu lá, boquiaberta. Yanla tentava me distrair, mas eu não conseguia. Minha fixação era visível. Lia não demonstrava qualquer tipo de constrangimento. Eu sim, estava constrangida, e os poucos que estavam conosco compartilhavam esse sentimento. No final da noite, quando estava bebendo um drinque para tentar relaxar, o objeto de minha atenção passou por mim, parou e jogou um dos brincos em meu copo. Foi embora gargalhando, sem pesar. Maldita hora em que deixei minhas portas abertas.
Nota do Editor: Sayonara Lino é jornalista, com especialização em Estudos Literários pela Universidade Federal de Juiz de Fora e atualmente finaliza nova especialização em Televisão, Cinema e Mídias Digitais, pela mesma instituição. É colunista do Literário e também do Sorocult.com.
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