As contradições entre o moderno e o tradicional, presentes na história de vida de um mestre de capoeira, são o tema central de estudo realizado na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP. Em sua tese de doutorado, Maurício Barros de Castro, pesquisador do Núcleo de Estudos de História Oral (NEHO), da FFLCH, propõe um diálogo entre a experiência do mestre baiano João Grande, um dos mais antigos da capoeira angola, com outras narrativas da tradição capoeirista. João Oliveira dos Santos, nascido em Itaji, interior da Bahia, foi batizado e depois titulado mestre João Grande por mestre Pastinha, maior de todos os expoentes da capoeira angola no Brasil. Após ensinar sua arte durante muito tempo em Salvador, o discípulo de Pastinha passou por dificuldades e chegou a abandonar a prática da capoeira, sendo encontrado, em 1981, por um de seus discípulos - mestre Moraes - trabalhando num posto de gasolina. Depois de receber ajuda, mestre João Grande voltou a se dedicar exclusivamente à capoeira e, em 1991, foi convidado a participar do Festival de Arte Negra de Atlanta, nos EUA, indo posteriormente para Nova Iorque, onde fixou residência e fundou sua academia, a Capoeira Angola Center. Obtendo o reconhecimento com sua arte, mestre João Grande recebeu o título de doutor honoris causa pela Universidade de Upsala, em Nova Jersey, além de uma condecoração do governo norte-americano por seu trabalho no desenvolvimento da cultura tradicional e folclórica naquele país. Nomes consagrados como B. B. King e John Lee Hooker também já receberam a homenagem. O fio condutor da pesquisa é a história contraditória de João Grande, pois foi numa cidade como Nova Iorque, que representa a modernidade globalizada, que o mestre conseguiu manter sua tradição ligada à ancestralidade cultural africana, enquanto no Brasil, onde o esporte mais se desenvolveu, o baiano de Itají não encontrou espaço para sua arte. Corpo Africano O trabalho também utiliza como matriz uma série de entrevistas com mestres capoeiristas do Rio de Janeiro e Salvador, de onde foi concluído que "as referências culturais nas quais a capoeira do tipo angola se baseia vêm direto de uma ancestralidade africana, e não da idéia de mestiçagem ou de ’arte marcial brasileira’", conforme afirma Barros. Ele explica que o diálogo estabelecido pela capoeira angola é com um "corpo africano". "A matriz corporal vêm da observação dos movimentos dos animais da fauna daquele continente - principalmente da zebra". Dessa observação surgiu a dança do n’golo, um ritual de acasalamento da região de Angola e Congo, no qual os jovens disputavam as moças não só dançando, mas também golpeando um ao outro com cabeçadas e coices. Em 1937, Getúlio Vargas descriminalizou a capoeira como parte de seu projeto político nacionalista e, em 1953, afirmou: "a capoeira é o único esporte genuinamente nacional". Esta formulação, questionada pelos mestres da modalidade angola, é sustentada por seguidores de outra vertente da capoeira, a regional. Sendo hoje em dia a mais difundida no Brasil, a capoeira regional foi criada por mestre Bimba por volta de 1930, tendo a angola como base. Ela se diferencia principalmente por se tratar, desde sua criação, de uma arte marcial (Bimba sempre defendeu esta finalidade); enquanto a angola assume um aspecto mais lúdico, que não abandona a luta, mas não a tem como objetivo principal. "Muitos argumentam que a capoeira é um esporte brasileiro até pelo fato de na África não existir a capoeira angola. Mas, ao analisarmos danças marciais ao longo do ’Atlântico Negro’, observamos formas de expressão muito similares à capoeira, como a Ladja, na Martinica, e o Mani, em Cuba, o que denota um passado comum", afirma Castro. O pesquisador também se utiliza de relato de mestre João Grande, publicado numa revista especializada, em que ele afirma ter visto, em sua passagem pela África, movimentos e golpes de características similares aos da capoeira de maneira geral.
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