Certo dia, saindo do mercado, um garoto apareceu do nada, se aproximou e, enquanto eu abria o porta-malas do carro, indaguei-lhe, meio sem jeito e até com certo desdém: "sim?", e ele: "não, é só pra ajudar". Neste instante, senti-me literalmente no papel de um personagem burguês e estereotipado, cuja preocupação única é o próprio bem-estar. Como se não bastasse, busquei no carrinho de compras qualquer mercadoria barata que pudesse aplacar a minha consciência; compensar o meu erro. Dei-lhe, então, um pacote de biscoitos e ele foi embora, agradecido é verdade, mas de um jeito seco, morto, de quem está habituado à sobra e à mendigagem. Mesmo sem querer admitir, sabia que naquele momento os biscoitos eram o pagamento pela minha paz de espírito. Sensação vazia de dever cumprido, que me fez recordar de tantos e tantos outros iguais ao garoto, sofredores de um mal enraizado e imutável nas comunidades subnutridas, parceiro da hipocrisia e da ignorância: o assistencialismo. Machado de Assis, lacônico, já ironizava esta prática em seu "Memórias Póstumas", pelo protagonista Cubas, traduzindo-a como "A Teoria do Benefício", na qual o assistencialismo, em essência, seria apenas o "ato de cessar momentaneamente as privações do indivíduo". Em outras palavras, o hábito assistencialista pouco contribui para a evolução de quadros sociais negativos, porque não tem como finalidade o crescimento intelectual da pessoa e de sua conduta como ser humano. Após o pão e o leite, o desempregado continua sem emprego e criança de rua segue abandonada, ambos sem perspectivas. Assim é a dinâmica do Mercado Assistencialista, um escambo momentâneo de consciência em troca de um produto comercial, geralmente de pouco valor para quem doa. Não quero, nesta exposição, ir contra o ato assistencial, cuja intenção legítima é a de contribuir para o bem do próximo, em curto prazo ou não. A raiz da questão é secular e refere-se ao paradigma paternalista de enfoque da área social, objeto de uma análise de custo-benefício muito bem elaborada, pautada pelos benefícios que traz para o doador, e que possibilita um exercício sofisticado de poder. Este modelo ainda é base para a formulação de boa parte das ações das esferas federal, estadual e municipal, pois impede a promoção de políticas públicas de enfoque na prevenção e na promoção de oportunidades. A predominância do Mercado Assistencialista evidencia o porquê da perspectiva social estar, ainda, fundada como paradigma de custo, e não de investimento. A dinâmica assistencialista não está orientada para a transformação comportamental do ser humano e relega o espectro social à perspectiva do Pão e Circo e ao Fundo Perdido, dicotomia antiga que define o investimento sem chance de retorno. A adoção de idéias, valores, atitudes e práticas sociais, como o ato de usar preservativo ou doar sangue, o hábito de não fumar ou a prática da leitura, representam processos extremamente planejados, de médio e longo prazos. Pedem esforços conjuntos e orquestrados, entre diversos setores da sociedade, com investimentos e comprometimentos constantes. Transformam intelectos e comportamentos. É preciso que ajamos a favor da construção e legitimação de um novo modelo de ação social, qualificado e duradouro, calcado em uma estrutura de ganho plural e funcionamento horizontal e distributivo: o Mercado Social. Nota do Editor: Rodrigo Crivelaro é especialista em Comunicação, Mobilização e Marketing Social e graduado em Publicidade e Propaganda, pelo Departamento de Comunicação da Universidade de Brasília.
|