Teremos que decidir: sim ou não para a proibição da venda de armas de fogo e munições? O tema é relevante, a idéia de um referendo é democrática - então, para o bom exercício do direito a voto, convém pesar bem os argumentos a favor e contra. Ainda mais diante da má formulação da pergunta do referendo, em que o não é sim e o sim é não. Tenho recebido muitas mensagens por e-mail dos contrários ao "desarmamento" (chamemos assim, embora esse não seja o termo tecnicamente mais adequado para a questão que será decidida em 23 de outubro). Espantam-me os pressupostos por detrás da campanha contra a proibição das armas de fogo. Grande parte dos slogans, cartazes e outras peças publicitárias que vi contra o desarmamento parecem ter como idéia prévia que o povo brasileiro é um verdadeiro exército privado, como se cada cidadão, pai de família e mulher "de bem" possuísse uma arma e a usasse constantemente para sua autodefesa - arma essa que lhe poderia ser tirada com a aprovação do "sim" no referendo. Entretanto, é ínfima a parcela dos brasileiros que possuem, portam ou usam arma de fogo legalmente. E mais irrisório ainda o número de casos em que, sob ameaça de marginais, alguém reage armado. Por essas razões, a proibição com certeza não terá reflexo importante nas estatísticas de mortes por arma de fogo (apesar disso - é bom ressaltar -, uma única vida salva em conseqüência do desarmamento já seria suficiente para justificá-lo). Os marginais, obviamente, continuarão obtendo armas ilegalmente, como sempre fizeram (e, a propósito, um dos meios ilegais para isso é tomando-as de quem as adquire legalmente - aí sim, as estatísticas comprovam que parte considerável do armamento apreendido em mãos de bandidos é subtraída por eles de cidadãos honestos). As razões para votar a favor da proibição, no entanto, são mais profundas do que as estatísticas da violência. Percebo que os maiores interessados em que os eleitores votem "não" em 23 de outubro são os fabricantes e comerciantes de armas e munições. Além deles, a não-proibição afeta a categoria pouco numerosa de brasileiros que costuma ter e portar arma. Excetuando-se as autoridades que têm (e continuarão tendo, qualquer que seja o resultado do referendo) autorização para tal por força do ofício, quem mais utiliza armas? Seria um contingente enorme de "cidadãos de bem preocupados com sua autodefesa", conforme a propaganda pelo "não" tenta fazer-nos acreditar? Na verdade, tenho visto que aqueles que portam armas, em sua grande maioria, não o fazem por uma necessidade de autodefesa ou pela ineficiência da polícia em garantir a segurança pública, mas pelo gostinho de poder que a arma proporciona. Qualquer covarde sente-se um deus atrás do gatilho de uma arma. Há exemplos numerosos de gente que gosta de ter uma arma para se sentir poderoso, superior. Gente que acha que um relógio Rolex vale mais que a vida de um assaltante - porque, afinal, o dono do relógio é rico e poderoso, e o assaltante é "um pobretão marginal e vagabundo, que rouba porque não quer trabalhar", conforme a idéia que talvez esteja na cabeça de muita gente que deseja de qualquer modo garantir seu direito de ter uma arma. A sociedade burguesa, hipócrita, quer esconder toda imagem que lembre o problema social causado pela histórica e secular insensibilidade das elites (econômica e política, sobretudo). E não só esconder: atirar nela. É claro que todos estamos sujeitos à violência. Qualquer um pode ser vítima de um marginal. Quantos, entretanto, hoje, se forem vítimas de um bandido armado, poderão se defender com uma arma? Uns poucos, pouquíssimos, que têm condições de comprar uma arma e aprender a usá-la - todos, certamente, membros da elite econômica que preferem se defender sozinhos a exigir segurança para toda a sociedade, inclusive para a grandíssima maioria que não tem condições de possuir uma arma e jamais terá uma, com ou sem referendo. A idéia é cômoda: quem tem dinheiro compra uma pistola ou um revólver e se defende por conta própria, e quem não tem que se lixe. Contra a atitude cidadã de lutar para que a segurança pública garanta a paz de todos, a atitude individualista de se proteger por conta própria... Portanto, o suposto direito de possuir uma arma é absolutamente antidemocrático, pois só atinge uma pequena faixa da população que tem condições de adquirir armamento. Esse o jogo do qual devemos fugir. A razão mais importante, porém, para votar pelo "sim" é a afirmação de um princípio: a arma é, em si, um mal que deve ser extirpado da face da Terra. Independentemente de qualquer estatística, o homem produzir um objeto cujo único objetivo é ferir, ameaçar, matar, é um fato deplorável, vergonhoso, incompatível com a idéia de uma humanidade solidária. É certo que, numa sociedade liberal, cada um tem o direito de fazer o que quiser, desde que não prejudique o outro. Entretanto, a arma é concebida deliberadamente para atingir o próximo. Por isso, mais do que simplesmente a venda, a própria fabricação de armas e munições deveria ser proibida - até que se chegasse a um ponto em que nem mesmo as autoridades de segurança usariam armas, e quem portasse ou tivesse uma fosse visto como um pária, um marginal, alguém indigno de conviver numa sociedade civilizada. Nesse sentido, votar contra as armas tem também um aspecto educativo, na linha da criação de uma mentalidade voltada para a cultura da paz. O resultado do referendo, seja sim ou não, provavelmente terá pouca influência nos números da violência. Mas votar pela proibição é afirmar a consciência de que a humanidade precisar trilhar o caminho da paz, é defender que o direito de alguém não pode se exercer em agressão a outrem, é estar consciente de que cada cidadão deve exigir do poder público que garanta a segurança de todos, é negar a atitude egoísta e pouco solidária daquela ínfima minoria que, tendo condição econômica privilegiada, quer garantir seus supostos direitos de se defender individualmente sem pensar na coletividade. Que os eleitores votem sim à proibição, e que todos os cidadãos, no exercício de sua cidadania, exijam do Estado que cumpra seu dever de garantir segurança e livrar o país das armas. Nota do Editor: Tomás Eon Barreiros é jornalista, especialista em Língua Portuguesa (PUCPR), Mestre em Comunicação e Linguagens (UTP) e Professor do Curso de Jornalismo do Centro Universitário Positivo (UnicenP).
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