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Crônicas
07/10/2022 - 06h06
Muito além de Perpétua e Tieta
Dartagnan da Silva Zanela
 

Costumamos nos apresentar com as dignidades que consideramos "apropriadas" diante dos demais que, naturalmente, também não deixam de se vestir com as distinções que eles consideram vistosas perante os olhos de todos, inclusive, é claro, dos seus.

É aquele festival de afetação. Não há uma única direção em que não encontramos pessoas honradas, muitíssimo honradas, desavergonhadamente honradas e, por incrível que possa parecer, nunca conseguimos avistar, nem de longe, um único canalha sequer.

Porém, sempre há aquele carcará, ressabiado que só ele, que ao ver tanto bom-mocismo reunido, mais do que depressa percebe que há algo muito estragado nos ares da praça.

Na verdade, ele percebe a obviedade das obviedades: debaixo de tanta pomba, escondido sob muitas camadas de pelos, pele, gordura, carne, tripas e outras vísceras, o que temos é um monte de indignidades que, cada uma ao seu modo, procura ocultar-se com seus mil e um disfarces.

Ao apontar para esse fato, junto com o carcará anônimo, não estou fazendo votos para que todos nós deixemos de lado essas poses de superioridade postiça e passemos a, cinicamente, exibir publicamente nossas vergonhas como se elas fossem algo meritório.

Na verdade, para infelicidade geral da nação, não são poucas as figuras que, realmente, apresentam-se com seus feitos indecorosos como se esses fossem um exemplo de virtude. Sim, os casos são muitos, mas não é disso que estamos falando.

Penso apenas que, ao invés de ficarmos com nossas afetações cotidianas de indignação ferina de moralismo ferido, poderíamos, só para variar, vestir os andrajos do silêncio diante da nossa consciência e lembrarmos que não temos muito que nos ufanar, que temos pouco para nos vangloriar e, por sinal, temos muito o que aprender.

O silêncio interior pode, em grande medida, nos ajudar a sermos mais justos conosco e, principalmente, mais misericordiosos para com os nossos semelhantes. Isso, é claro, se tal mudança de hábito for realmente da nossa vontade, não é mesmo?

Crônica falada.


Nota do Editor: Dartagnan da Silva Zanela é professor e ensaísta. Autor dos livros: Sofia Perennis, O Ponto Arquimédico, A Boa Luta, In Foro Conscientiae e Nas Mãos de Cronos - ensaios sociológicos; mantém o site Falsum committit, qui verum tacet.
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