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Opinião
20/09/2022 - 06h22
Muito além do paraíso perdido
Dartagnan da Silva Zanela
 

Fim de aula. Na verdade faltavam alguns poucos minutinhos para que o sinal fizesse eco pelos corredores do colégio e, enquanto aguardávamos o abençoado tilintar, aproveitei para comentar com os alunos a minha experiência com a leitura do livro “Paraíso Perdido”, leitura essa que a muito se perdeu nas brumas da minha memória, mas que muitas das impressões que tive, na época, ainda se fazem presentes em minha agrisalhada alma.

Enquanto tecia alguns comentários pra lá de pessoais a respeito desta obra de John Milton, um aluno, de forma jocosa, disse-me que não adiantava nada falar aquelas coisas para ele porque ele não gosta de ler e que dificilmente um dia iria criar gosto por isso. Outros, prontamente, concordaram com o colega.

Bobagem. Repito: uma tremenda bobagem. Quando qualquer pessoa me diz que não gosta de ler, sei que ela não sabe o que está dizendo. Na real, o problema não está no ato de ler, mas sim, nos livros que chegam às suas mãos para que eles tenham que deitar as suas juvenis vistas inquietas.

Tendo isso em vista, vem comigo e me diga uma coisa: tem cabimento esperar que um adolescente comece a gostar de ler exigindo que o abençoado leia um livro como “A moreninha”, ou algo similar? Algo me diz que, tal exigência, no mínimo, é uma tremenda furada, pra não dizer outra coisa.

O grande problema do público que afirma não gostar de ler é que nunca foram instigados, nunca foram desconcertados com uma leitura que realmente procure abordar temas, questões, problemas e dilemas que realmente possam lhes parecer provocadores, que toquem profundamente a sua alma.

Ao ser confrontado com essa situação, lembrei-me de uma cena do filme “O homem sem face” (1993), dirigido por Mel Gibson e com roteiro de Malcolm MacRury. Na cena que me veio à memória, o garotinho Charles "Chuck" Norstadt se recusou a ler o livro de poesia que foi apresentado pelo seu professor, o senhor Justin McLeod, dizendo que [adivinhem] ele não gostava de ler poesia porque ele achava isso uma bobagem, etc. e tal.

Justin McLeod ao ouvir esse comentário, perguntou ao guri: você não gosta de poesia ou da palavra amor? Houve um pesado silêncio por um instante entre eles. Esse era o “x” da questão. O problema não estava com a poesia, mas sim com a ideia que o garoto tinha dela. Diante do espanto manifesto pelo moleque, o professor lhe emprestou uma antologia de poesias que foram escritas por aviadores, muitos deles que, inclusive, haviam lutado na Segunda Guerra Mundial.

Relutante, e com uma cara de quem comeu e não gostou, o garoto levou o livro consigo e, para seu espanto, amou o que leu, porque não era um trem meloso, como ele imaginava, e como frequentemente chegava até as suas mãos. Não. Era algo titânico que fazia seus olhos marejar em lágrimas diante da força expressa pelas palavras e através dos versos.

Bem, se estamos nessa “vibe” de não gostarmos de ler, penso que deveríamos, sem pestanejar, mudar o rumo da prosa e passarmos a dizer para nós mesmos: eu, ainda, não encontrei o tipo de livro que toca os pontos sensíveis do meu ser, mas um dia irei encontrar. E pode ter certeza que depois que esses abençoados forem encontrados, quando formos atropelados por eles, pelos livros, iremos entender com clareza o que estava realmente nos faltando para entregarmos as meninas de nossos olhos a esse deleite sem igual que é a magia que se manifesta no ato silente de ler.

Podemos dizer que tal predileção do nosso olhar por certos temas, estilos e gêneros seria muito similar ao nosso gosto por certos filmes e determinadas séries. Há épocas em que estamos vidrados em filmes de terror e, passado algum tempo, os mesmos não mais nos cativam tanto. Noutras épocas nossos olhos vertem lágrimas diante de um épico e, passadas algumas primaveras, deixamos de ter “epifanias estéticas” diante deles e, assim o é, porque nosso estado de espírito vai se transformando com o passar do tempo e com as experiências que vamos vivenciando que, de quebra, vão agregando em nossa alma uma certa fortuna humana que, naturalmente, vai ampliando nosso horizonte de consciência e lapidando lentamente o nosso coração.

Por isso, não mais digamos para nós mesmos que não gostamos de ler, porque isso não é verdade. Digamos, sim, que nós não sabemos ainda quais são os tipos de livros que nós precisamos ler para que, ao lê-los, estes nos auxiliem em nosso aprimoramento como pessoa e que, com o auxílio da Graça Divina, em breve, muito em breve, iremos descobrir e, quando isso acontecer, terá início uma fascinante jornada de autoconhecimento.


Nota do Editor: Dartagnan da Silva Zanela é professor e ensaísta. Autor dos livros: Sofia Perennis, O Ponto Arquimédico, A Boa Luta, In Foro Conscientiae e Nas Mãos de Cronos - ensaios sociológicos; mantém o site Falsum committit, qui verum tacet.
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