“Gosto não se discute, se lamenta” Anônimo Se há algo que frustra a nós, escritores, é ver tantas obras medíocres fazendo sucesso. É incrível como livros com histórias inverossímeis e superficiais são adoradas por milhões de fãs. Isso me lembra o que disse Rui Barbosa sobre o homem chegar a rir da honra e ter vergonha de ser honesto, pois eu chego a sentir vergonha de me preocupar tanto com a qualidade do que escrevo. Quando penso no esforço que faço para criar histórias que tenham um mínimo de verossimilhança e personagens consistentes, fico particularmente frustrada ao ver histórias que são completamente desprovidas de sentido fazendo sucesso. Isso me leva a perguntar como tanta gente pode ter um mau gosto tão atroz, mas ao pensar em questão de gosto, obrigo-me a pensar que quando era mais nova eu também gostei de muitas coisas que hoje admito que eram de qualidade duvidosa, como o desenho Cavaleiros do Zodíaco e os filmes da franquia Rocky e Rambo. Então, tenho que lembrar que gostos mudam e que, à medida que uma pessoa vai amadurecendo, seus gostos podem melhorar e ela pode deixar de gostar de coisas com as quais antes se deliciava. Um fator que contribuiu muito para que certos gostos meus mudassem foi perceber que muitas histórias das quais eu gostava transmitiam mensagens e conteúdos errados. E, à medida que meu senso crítico ficou mais afiado eu fui me tornando mais exigente principalmente em relação a questões de verossimilhança. Mas se há algo que eu não consigo entender é ver pessoas gostarem de obras que transmitem mensagens erradas. Penso nisso especialmente quando vejo histórias que retratam relacionamentos abusivos e mostram o estupro de forma romantizada sendo lidas e admiradas pelo mundo afora. O que me deixa mais surpresa é que grande parte do público leitor é composto de mulheres que suspiram ao ver o sexo masculino dominando o feminino, tratando-o de forma desrespeitosa e até brutal. Realmente, é algo difícil de compreender. E eu tive esta impressão quando uma moça falou sobre um mangá yaoi (*) que eu cheguei a ler por um tempo mas que depois parei por não aguentar ver o estupro sendo retratado como algo normal e romântico. Muitas cenas presentes no mangá me enojavam e isso me levou a desistir de prosseguir na leitura. Entretanto, o que mais me revoltou na história foi ver um homem sequestrar um rapaz inocente e fazê-lo de escravo sexual, submetendo-o às piores humilhações e, muito tempo depois que o rapaz foi resgatado do cativeiro, os dois se tornaram amigos, com o sequestrador desenvolvendo afeto pela sua vítima e chegando a resgatá-lo de outra pessoa que o mantinha em cativeiro. Eu me perguntei que tipo de mentalidade tem a pessoa que escreve uma história desse tipo, pois quem lê fica com a impressão que sequestro, estupro e escravidão sexual não são tão graves e que a pessoa que sofreu todas essas violências não tem a menor dignidade, já que se torna amiga de alguém que lhe fez tanto mal. Qualquer leitor com o mínimo de consciência crítica achará tal história totalmente inverossímil. Ninguém, em sã consciência, iria se tornar amigo de alguém que o houvesse sequestrado e feito de escravo sexual. Sabemos que, na vida real, pode acontecer de uma pessoa criar afeto por outra que a sequestra, no entanto isso se deve a um problema chamado de Síndrome de Estocolmo. Não é preciso ser psicólogo ou psiquiatra para entender que uma pessoa que se torna amiga de quem a sequestrou e fez de escrava sexual não está bem da cabeça e com certeza precisa de tratamento. Todavia, o que eu achei mais perturbador foi quando uma moça que conhece a história me contou: “É verdade que houve estupro e sequestro, mas o sequestrador hoje tem afeto pelo rapaz e até ajudou a salvá-lo.” Que tipo de pessoa fala de sequestro e escravidão sexual como se não fossem nada de mais? Além da situação descrita ser inverossímil, ela transmite uma mensagem totalmente errada. Como uma escritora, eu posso mencionar sequestro e estupro, só que nunca retratarei essas situações como se fossem normais e aceitáveis, afinal qualquer um sabe que sequestro, estupro e escravidão sexual são coisas abomináveis e que causam feridas profundas nas suas vítimas. Além disso, como alguém que faz coisas tão abomináveis como manter uma pessoa em cativeiro e seviciá-la depois muda tanto a ponto de se tornar amiga da pessoa a quem humilhou e maltratou e ajudá-la numa hora de necessidade? É complicado falar sobre esses aspectos problemáticos porque não podemos tirar do artista o direito de escrever o que bem quer. Todo mundo é livre para escrever suas histórias, por piores que sejam. E também não temos o direito de dizer a ninguém do que deve ou não gostar. Quanto a apontar aspectos inverossímeis ou problemáticos em livros, filmes, novelas, seriados, desenhos e mangás, precisamos lembrar que todo mundo tem direito a ter seu gosto, por pior que seja. Entretanto, isso me faz lamentar mais ainda o fato de que enquanto eu e tantos outros nos esforçamos para criar boas histórias, outros escrevem verdadeiras porcarias e vendem sem a menor dificuldade. (*) mangás yaoi são mangás que retratam relacionamentos entre homens. Tais mangás despertam controvérsia por mostrar estupro romantizado.
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