A relação que estabelecemos entre as palavras que utilizamos, mal e porcamente, frente às realidades que se apresentam diante das nossas vistas, seria semelhante, não igual, à relação que se estabelece entre um ácido e uma chapa de metal, como bem nos aponta o escritor japonês Yukio Mishima, em seu livro “Sol e Aço”. De certa forma, as palavras, como os ácidos, corroem a realidade, reduzindo-a a abstrações, para que estas integrem a nossa mente, nosso imaginário e memória, para que possamos matutar a respeito das coisas, coisinhas e coisonas que essas abstrações se referem. A encrenca toda começa - porque nessas paradas sempre há algumas encrencas - quando as próprias palavras começam a se corroer, com o tempo e com o mau uso feito delas, frente aos fatos e fenômenos e, com isso, acabam perdendo a sua capacidade de solver a realidade e, em muitos casos, as palavras, devido a essa deformação, acabam por tomar o lugar do real em nossa cabeça o que, também, como nos adverte Yukio Mishima, termina por corroer a nossa mente, como se as imagens e ideias mal formadas que pululam nossa cumbuca fossem uma espécie de gastrite cerebrina. O pior de tudo é que não temos como nos esquivar desse tipo de tropeço. Se correr o bicho pega, se ficar o bicho... passa na fita. Porém, temos como encarar essa encrenca pra lá de humana e enfrentá-la, se permitirmos que o nosso coração seja inundado com muita humildade e, é claro, com um bom tanto de prudência. Humildade. Está aí uma palavrinha que tem um poder tremendo, mas que, como incontáveis outras palavras que integram o nosso limitado vocabulário, acabou perdendo o seu poder sobre as inúmeras facetas da realidade, devido ao fato de não conhecermos de forma minimamente razoável o seu significado, por desprezarmos ao que, especificamente, ela se refere. O mesmo podemos dizer a respeito da prudência que, diga-se de passagem, não apenas perdeu o seu sentido, mas também acabou, em certa medida, entrando em desuso, tamanha é a corrosão que se faz presente na alma do homem moderno. Originariamente, a palavra humildade designava aquela condição em que nos colocamos próximos do solo, rente ao chão, condição essa que nos faz lembrar de onde viemos e para onde regressaremos. Aliás, tanto humildade, como humanidade, tem uma relação direta com a palavra latina - mais um vez o tal do latim - HUMUS, que quer dizer tão só e simplesmente terra. Dito de outro modo, com uma boa dose dessa bela virtude, que é a humildade, nós vamos, com o tempo, e com o auxílio da Graça Divina, formando um sólido senso de realidade e, tal senso, começa a ser edificado por aquilo que Confúcio chamava de “a retificação das palavras”, para que estas possam realmente cumprir o seu papel de nos chamar para a realidade e nela nos instalarmos. Para realizar essa retificação, o restabelecimento da devida medida para os termos que usamos em nossa vida, é imprescindível que percamos de vez essa mania, feia barbaridade, de ficarmos atribuindo para toda e qualquer palavra o sentido que nos der na telha, que nós imaginamos que elas deveriam ter. Que nós desejamos que elas venham a ter. E temos que largar esse vício cognitivo de vereda porque, quanto mais nós almejamos colocar nossas palavras, deformadas e mutiladas, no lugar da realidade, menor será nossa capacidade de compreendê-la e de agir de forma eficiente, eficaz e efetiva sobre ela. Trocando em moela de galinha: numa roda de conversa onde cada um dos integrantes usa as mesmas palavras com significados divergentes, estes, admitam ou não, não estão se referindo a realidade alguma, apesar de cada um ser capaz de jurar de pés juntos que ele está instalado na realidade e que todos os demais estariam chafurdando na lama da sua incorrigível alienação. Por essa razão, especificamente por essa, que a humildade é a virtude fundamental para aprendermos qualquer coisa, principalmente para aprendermos a ser maduros, para nos tornarmos gente e para agirmos como tal, pois enquanto não aprendermos a fazer tal qual o publicano que orava no fundo do templo, enquanto não pararmos de ficar pensando que nossos juízos [maliciosos e ideologicamente tortos] são a medida de todas as coisas, continuaremos tendo a nossa inteligência, e bem como o nosso caráter, sendo lentamente corroídos pelo leviano uso que fazemos das nossas desgastadas palavras, como bem nos lembra Yukio Mishima.
Nota do Editor: Dartagnan da Silva Zanela é professor e ensaísta. Autor dos livros: Sofia Perennis, O Ponto Arquimédico, A Boa Luta, In Foro Conscientiae e Nas Mãos de Cronos - ensaios sociológicos; mantém o site Falsum committit, qui verum tacet.
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