Tive na faculdade um colega com o qual gostava muito de trocar ideias. Quase sempre divergíamos de posição, ele sempre em defesa de um Estado de Segurança e eu sonhando com um Estado de Bem-Estar Social. Mas os seus argumentos buscavam respeitar a lógica própria das ideias e ele desenvolvia-os com cuidado e sempre com espaços para as minhas intervenções. Da mesma forma - muitas vezes, com bastante perspicácia -, ele abria flancos nas minhas argumentações, obrigando-me a reavaliá-las e até mesmo refazê-las. Uma certa vez, estávamos em um boteco próximo da universidade, bebendo e exercitando nossas ideias, quando deparei-me com uma faceta ainda desconhecida desse meu colega: ele tratava mal o garçom. A primeira vez me surpreendeu, mas deixei passar, duvidando do que ouvira. Na segunda vez, ficou claro que o cidadão ignorava as mais básicas regras de tratamento cordial com os empregados, quanto mais - o que eu acredito - o necessário respeito e atenção com todos os trabalhadores, particularmente os que nos servem, aos quais tenho um senso de gratidão enorme. Nada mais podia acontecer em nossa até então interessante amizade a partir dali. Eu havia encontrado um antagonismo insuperável. E nossas conversas terminaram. Todos temos convicções e o fundamento da cidadania é o respeito pela convicção dos outros, desde que essas convicções não signifiquem, justamente, a destruição das nossas. Essa é a diferença básica entre divergência e antagonismo. Não se pode pedir que um judeu “reconheça" os argumentos de um nazista. Todo debate de ideias tem uma área verde na qual a troca de opiniões pode ser enriquecedora e uma área vermelha na qual uma posição contrária implica a destruição de uma convicção fundamental. Em tese, pode-se até admitir um tema, mas jamais considerá-lo como uma prática cotidiana, um fato entre outros fatos. A existência de um partido nazista, por exemplo. Vivemos tempos de profundo antagonismo. E aí reside um problema com o qual, igualmente, corremos riscos. O risco maior é o de confundirmos divergências sobre as quais poderíamos discutir e acrescentar nosso ponto de vista, ou acrescentar-nos do ponto de vista divergente, com antagonismos inconciliáveis. E, por isso, acabamos fazendo campanha contra as divergências, afastando possíveis aliados, mesmo que não amigos, em vez de destacarmos os antagonismos, focarmos neles, apenas neles, combatendo-os com todas as nossas energias. Tenho um querido amigo que coleciona armas. Compreendo todas as razões pelas quais ele me expõe e considero-o bastante coerente. Além disso, trata-se de uma pessoa inteligente e bastante sensível às questões importantes da cidadania, sem exceção. Vejo-o se chatear com os ataques que pululam nas redes sociais aos que gostam de armas, como se muitos destes que atacam não tenham usado (ou ainda usem) camisetas do Che com uma arma nas mãos ou cultuam um Lamarca ou um Marighella com rifle ou revólver em punho. É a velha falácia de querer punir o consumidor e não o traficante, ou de querer matar o mensageiro em vez de condenar o autor da mensagem. Um erro crasso que impede a ampliação do leque de apoiadores de um projeto de resgate da cidadania, do replantio de árvores no deserto em que está se transformando a nossa Democracia. Cito esse exemplo só para ilustrar a falta de habilidade que muitos de nós cultivamos e que embaralha amigos e colegas, colegas e estranhos, estranhos e inimigos. No balé da vida em comum, dançamos com entusiasmo junto a nossos amigos, não negamos uma dança aos nossos colegas e, por vezes, damos uma chance a um estranho. Mantemo-nos distantes e atentos aos inimigos. E, mesmo assim, é mister lançarmos vez por outra um olhar sedutor para eles, porque, mesmo nessas águas, é possível resgatar uma ou outra alma desencontrada. Nota do Editor: Daniel Medeiros é doutor em Educação Histórica e professor de Humanidades no Curso Positivo.
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