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SEÇÃO
Crônicas
28/07/2022 - 05h54
Perdidos e não achados
Damião Ramos Cavalcanti
 

Ou entregues a Deus. Contudo, ninguém gosta de perder. Meu pai dizia que é bem melhor doar a camisa do que perder um botão da que está vestindo. O sentimento de perda é relativo à coisa da qual mais se precisa; da mais irrecuperável como a do amigo ou da amiga que se vai; daquela que mais que faz o nosso gosto estético, ou além de outras perdas, das bem guardadas, que são objetos e assuntos da nossa memória. Quanto à beleza, ao belo, também pelo seu valor, quem já não viu vaidosa mulher, constrangida pela perda de um brinco de uma das suas orelhas? A perda dessas pequenas coisas que enfeitam é mais dolorida do que propriamente em razão dos seus valores.

Escritor, que se preze, cresceu, carregando consigo uma boa caneta ou um estiloso lápis no bolso da camisa. É gente que só compra camisa, se ela tiver bolso para guardar o querido instrumento de trabalho. Ostentando assim, não falta alguém que retire sua caneta, explicando depois: “Me empreste aí”... E, horrivelmente, acontece que a caneta não volta mais. E se ela se caracterizou em detalhes de tampa e pena de ouro, foi cobiçada e furtivamente levada, geralmente não volta mais. Sobretudo aquelas, de marca especial, caras, históricas como a Parker 51. Já fui vítima disso, mas depois de três dias, lembrei a quem emprestei, de súbito, perguntando-lhe: “Já terminou de usar a caneta?” Embaraçou-se porque a dita cuja estava ostensivamente no seu bolso. E logo se justifica pelo esquecimento ou porque tinha uma igual... Para se recuperar um objeto perdido ou mesmo furtado, recomenda-se não perder a cabeça. Por isso, o pedreiro usa a prudência de carregar sua colher na caixa de ferramenta, na mão ou na cintura para não dar bobeira. Contudo, para se recuperar objetos perdidos, não se perca a casa... Existe até quem recorra ao sobrenatural, como à venerável Nossa Senhora Desatadora de Nós. A coisa perdida e não encontrada não deixa de ser um nó cego.

Nesses dias de chuva, vi muitos conhecidos molhados, alguns espirrando e explicando-me que preferem andar na chuva a perder guarda-chuva. Na verdade, tanto sombrinha como guarda-chuva não podem dar colher de chá, durante o inverno. Há sempre um descarado a subtrair o alheio. E lá se vai o guarda-chuva ou a sombrinha em mãos estranhas para sempre ou até ele próprio perdê-lo ao próximo usuário. A China aliviou esse drama, produz bonitos guarda-chuvas e belas sombrinhas por preços bem acessíveis, sem alguma goteira. Comprar de novo o perdido é a solução contra aqueles que se dedicam a colecionar “perdidos”, servindo-se de tudo, porque qualquer coisa contenta esse vicioso achaque.

Quem tem biblioteca e zela pelo seu acervo muito teme os pedidos de empréstimo, mesmo se tiver caderneta de anotações. Geralmente o livro pedido é o de publicação rara, histórico, não mais editado, fadado a esse tipo de interesseiro empréstimo. Sem cerimônia, avisa-se: Este livro tem dois ‘v’, ou seja: Vai e volta. Mas, mesmo assim, ele vai e não volta. Há quem faça coleção dos empréstimos ou da retirada de alguma biblioteca... Perder essas coisas seria muito menos constrangedor do que o sofrimento em perder amigos ou de entes queridos que se vão. Incomparável! É muito menos sofrível perder o dia, o ano. Há quem se reconforte diante de perdas recorrentes, não dizendo que as perdeu, mas que as devolveu a Deus.

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