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Crônicas
21/07/2022 - 06h11
Fronteiras entre vivos e mortos
Damião Ramos Cavalcanti
 

Há muito tempo venho acalentando lembranças do meu amado amigo Luizito, sem adormecê-las. No silêncio, são ditadas palavras como as que ele me dizia; outras como se fossem para eu escrever. No silêncio, acontecem palavras que desabrocham, desfazendo mistérios, segredos e nos acordando do sono do esquecimento. Então, ontem, como o espírito do Professor Luizito, de visita inesperada, Helena e Lidiana sonorizaram, talvez sem mais, sem porquê, o nome do amigo, como se ele estivesse ali, presenciando a conversa, sorrindo e pronunciando coisas sábias, iguais àquelas que, depois da sua morte, vivo a escutar. Fala sem coisas corriqueiras, sobretudo porque o silêncio é a linguagem do essencial, do que possui uma força livre e criadora. Os temas me vieram ao pensamento sem alguma ordem lógica e determinada.

Contudo, havia uma espécie de síntese do que sempre foi presente na nossa amizade, em diversas fases da nossa vida, em diferentes fases da nossa vida de trabalho e de lazer. E como estávamos na Secretaria de Cultura, ele nos sugeriu ideias de interesse cultural, mas sempre com perspectiva filosófica. Também outros assuntos que, mesmo em mente, sem serem verbalizados, foram, espontaneamente, relembrando a nossa formação, advinda do Seminário, de onde Luizito Dias Rodrigues foi um dos frutos raros. Inteligentíssimo, tudo sabia fazer, tudo sabia dizer e tudo sabia ensinar, numa metodologia milagrosa. Ninguém sabia mais do que ele o modus comparandi, do que aprendi comparar para compreender, aprender e sobretudo para as minhas horas de aula, aprendendo e ensinando.

O silêncio dos mortos, no caso do Professor Luizito, que faleceu, em 18 de novembro de 2015, é acessível desde que se pense fortemente nele; e mais ou menos inacessível, desde que, pouco, pense-se sobre ele, desfazendo fronteiras entre as almas. Pois o Lógos, que elas possuem, é proporcional à liberdade infinita dos espíritos. Isso é perceptível, nas estradas e caminhos dos vivos e mortos. Geralmente, os vivos são indiferentes à consistência metafísica das almas, quase como na tradição homérica que definia a alma (psiché) como uma sombra que vagaria, sem destino, pelo Hades, privilegiando, pelos poemas épicos, os heróis que adquiriam imortalidade nos campos de batalha. Sem heroísmo, a alma se perderia no esquecimento. Mas, no estatuto metafísico do filósofo Heráclito, ao humano nasce uma nova conceituação de alma, de psiché.

É com essa alma com que conversamos com o Professor Luizito, considerando a polissemia da palavra Logos, que é imensa e não esconde sua significação, tanto aos vivos, como sobretudo aos mortos. Por que cabe-nos fugir das limitações, e por que criá-las, se potencialmente elas inexistem? Se converso com os mortos, então tenho a coragem de dizê-lo, de socializar nossas possibilidades inesgotáveis, em vida e fora dela. E é um diálogo que prospera especialmente no silêncio. Há muita sabedoria nessa maneira de abordar a convivência com os que já se foram, sobretudo com os que foram e são muito amados. Numa circunstância das mais frugais, tais espíritos aparecem, mesmo aos que grosseiramente não acreditam.

A estima pelos mortos queridos consegue tudo o que se deseja em relação a eles, tudo depende do respeito que nós atribuímos às suas existências. Proust, em A fugitiva, que teve tradução do nosso poeta Carlos Drummond de Andrade, adverte-nos de que não há maior crueldade aos que queremos bem, do que esquecê-los. O que talvez, sobejando aos mortos, atribui-se também aos amados que estão vivos... Nesse sentido, não existem fronteiras entre vivos e mortos.

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