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SEÇÃO
Crônicas
02/06/2022 - 06h07
Amor de dog
Marco Antonio Spinelli
 

Eu nem sabia da existência ou do canal do influencer digital Jesse Koz e seu cachorro, o Golden Retriever Shurastey (uma brincadeira com a música do The Clash - Should I stay or Should I go? - Shurastey ou Shuragow?). O rapaz vendeu tudo o que tinha, comprou um Fusca 78 e saiu pelo mundo com a cara e a coragem, rodando quase vinte países com seu incansável companheiro, Shurastey.

Na sua última aventura, estava indo na direção do Alasca quando bateu seu carro de frente com uma SUV. Jesse e Shurastey morreram instantaneamente. As fotos dos dois em vários lugares do planeta encheram a internet nos dias seguintes. Foi aí que eu, como muita gente, tomei conhecimento da aventura dos caras. A imagem sorridente do Jesse do lado do infinitamente de boa Shurastey doeu no coração.

A dupla do balneário Camboriú vai ser homenageada com um Memorial em pista de passeio de cães da cidade. Uma homenagem aos laços profundos e ancestrais entre o homem e seu fiel companheiro.

Um cara falou, em um Congresso de Neurociências, que os cachorros não amam os homens. Tem esquemas cognitivos de afiliação e obediência, mas não é amor. Quase perguntei se a mãe gostava dele ou tinha laços culturais de afiliação e cuidados com a transmissão do genoma. Que vontade de pagar de bacana. Ou de não entender de amor, nem de dogs.

Cachorros tem uma prega na testa que os lobos não tem, por isso olham de um jeito quase humano. Já deve ter ficado claro aos leitores que eu sou super cachorreiro, e escrevo essas mal tecladas palavras com as duas bebês aqui perto. Jackie Tequila, a mais velha, me olha com olhar quase humano quando está na hora da comida ou do rolê na rua. Bella, a caçula, foi adotada de um lar onde sofreu alguns abandonos de quintal e prováveis descuidos. Ela é medrosa e comemora a nossa volta para casa como se estivesse vendo o Papai Noel.

A psiquiatra Nise da Silveira, nos anos 40 do século passado, introduziu nos cuidados com os pacientes psiquiátricos a presença fiel e serena dos cachorros de rua. Os pacientes melhoravam de maneira surpreendente, já que eram entendidos como pacientes crônicos e incuráveis. Até o final de sua vida, Nise sempre esteve cercada por seus cachorros. O que diriam os haters e os supremacistas de hoje dessa infinita delicadeza entre homem e animais?

Os dogs tem um tipo de afetividade muito parecida com os bebês. Já vi muita gente com depressão, em quadros mais ou menos graves. Temos o instinto quase coletivo de afastamento de uma pessoa que está deprimida. Nossos instintos entendem esse estado de baixa energia como uma infecção ou algo perigoso. Só crianças e cachorros fazem o certo com quem está deprimido, que é ficar perto e encontrar uma ressonância afetiva. A Neurociência tem um nome para isso, que é a Ressonância Límbica. É a capacidade que os mamíferos tem de entrar em uma frequência semelhante, do ponto de vista do afeto, com outro mamífero. A capacidade de estar perto e tentar ajudar alguém que está em dificuldades. O amor do dog, como falou o Neurocientista, não é igual ao humano, não é processado cognitivamente. É antes uma capacidade de entrar em ressonância com a emoção e o estabelecimento de uma proximidade, de um Tamo Junto que os mamíferos acionam quando o grupo precisa de proteção mútua ou cuidado.

Bella me emociona particularmente, por ter visto nela a mesma cura amorosa que eu vejo com os pacientes. Bella tinha uma espécie de reação de pânico com gritos, pessoas novas ou homens desconhecidos. Sua reação de medo sempre foi o de tremores e perda de controle da urina. Com o passar do tempo, foi mudando de um tipo de vínculo Inseguro para Seguro, hoje tem mais confiança em seu ambiente e na vida. Na prática clínica, é também longo o caminho para cicatrizar feridas e refazer o vínculo com a vida. Parar de se castigar pelo o que os outros fizeram. Parece estranho de se pensar, mas preste atenção quanta gente se odeia pelos erros que outras pessoas cometeram, sobretudo nos anos iniciais de suas vidas.

Olho para a foto de Jesse Koz e Shurastey e sinto uma pontada pela perda de caras que eu não conheci, mas também pelo mistério de terem vivido juntos os momentos mais incríveis de suas vidas e terem morrido também juntos. Parecem quase a mesma pessoa.

(Termino o texto com uma lágrima de canto. Bella chega perto e me dá uma lambida).


Nota do Editor: Marco Antonio Spinelli é médico, com mestrado em psiquiatria pela Universidade São Paulo, psicoterapeuta de orientação junguiano e autor do livro “Stress o coelho de Alice tem sempre muita pressa”.

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