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Opinião
21/05/2022 - 06h10
Má vontade e fé tíbia
Dartagnan da Silva Zanela
 

Lembro-me que lá pelo final do século passado, tive meu primeiro contato com alguns escritos de Hugo de São Vitor. Dentre esses escritos estavam alguns de seus sermões que, diga-se de passagem, são primorosos e, por isso mesmo, recomendo vivamente a leitura dessa preciosidade que é o livro “Sermones Centum”.

Destes sermões, há alguns onde ele faz algumas considerações sobre a simbologia presente na estrutura de uma catedral. Considerações essas que, como direi, tiraram incontáveis escamas de minhas vistas e me ajudaram pra caramba. Me ajudaram a perceber inúmeras questões que, até então, eu era incapaz de cogitar e que, agora, passaram, graças as suas palavras, a fazer parte das minhas reflexões e referências.

Naturalmente, não tenho como apontar nestas linhas, tintim por tintim, todas as dimensões simbólicas que eram indicadas por Hugo de São Vitor. Aliás, não ousaria ter tal presunçosa pretensão. Por isso, procurarei me ater a tão somente um elemento que, pessoalmente, considero muito significativo. Refiro-me especificamente ao átrio, que fica entre a porta de entrada e a nave principal que nos leva até o sopé do altar.

Segundo Hugo de São Vitor, esse espaço representa os pecadores arrependidos. Nesse espaço, vamos nos preparando para deixar a agitação do mundo para irmos aquietando o nosso coração para adentrar a casa de Deus e, nela, podermos melhor ouvir o Altíssimo e nos redimir de todas as melecas que diariamente realizamos. Por isso, a água benta, um sacramental importantíssimo, fica junto a essa antessala: para tocarmos ela com a ponta de nossos dedos e, em seguida, nos ajoelhar - em sinal de humildade e de arrependimento - e fazer o sinal da cruz, distante e diante do altar, o monte calvário incruento.

É isso. O altar é a representação simbólica do monte Calvário onde o padre, agindo “in persona Christi”, sobe para celebrar a Santa Missa, da mesma forma que Nosso Senhor subiu o monte Calvário para ser crucificado, carregando o fardo de todos os nossos pecados.

Por essa razão, como nos lembra o escritor francês Fulcanelli, em seu livro “O Mistério das Catedrais”, quando se edificava uma catedral, basílica ou capela, a primeira coisa que era construída era o altar e, tudo o mais, era erigido em torno dele, pois ele, o altar, junto com o sacrário, são o centro do templo.

Bem, assim o era até não muito tempo atrás. Agora, são outros quinhentos. E, assim o é não porque, como dizem os populares, hoje os tempos são outros, mas sim, por outras razões que vão muito além do vagar dos séculos.

Como todos nós muito bem sabemos, as artes de um modo muito especial, sempre refletem os valores que são cultivados pela humanidade no íntimo de seu coração, no núcleo do seu ser e, naturalmente, tudo aquilo que tocamos com nossas mãos, acaba por receber uma indelével impressão do que há em nossa alma. Não tem escapatória. Tudo aquilo que tocamos acaba revelando a face que ocultamos com nossas incontáveis máscaras.
 
Trocando em miúdos, se há uma mudança significativa na forma como edificamos um templo e na maneira como nós o concebemos no seu todo e, principalmente, nos seus detalhes, é porque algo foi transubstanciado em nosso coração.

Atualmente, quando vamos a uma igreja, de feição arquitetônica modernosa, já não encontramos o átrio. Há inclusive algumas onde o sacrário fica oculto na sacristia e, inclusive, há outras Igrejas que nem sacristia tem. Bem, como tínhamos dito, tais detalhes não são casuais. Eles indicam uma mudança drástica que está ocorrendo em nossos corações.

Em se falando nisso, pouco tempo atrás, vi uma foto de uma pia para água benta, numa catedral belíssima de uma cidade brasileira. Ela, a pia, junto à porta de entrada, era belíssima, mas não havia água benta nela não. Estava seca. Sequinha. Em seu lugar tínhamos um frasco de álcool gel, com o lembrete: uso obrigatório.

A legenda da fotografia era: a crise da Igreja sintetizada em uma imagem. Uma legenda precisa e cirúrgica, diga-se de passagem.

Provavelmente, todos que procuram frequentar religiosamente a Santa Missa, devem se lembrar que na entrada das Igrejas não mais encontramos o sacramental da água benta. Não. No seu lugar foi colocado um frasco com álcool gel, ou um aparelho onde, pisando em um pedal, derrama-se nas mãos uma porção do dito cujo, o novo “sacramental” da nova ordem.

Ao dizer isso, não estou declarando que não deveríamos ter tal apetrecho na entrada de uma Igreja. Por favor, não surte com chiliques sanitários. Repito apenas o que certa feita fora dito pelo professor Pedro Augusto: custava colocar uma máquina similar a essa com água benta, ou um frasco com o referido [e verdadeiro] sacramental bem na entrada da casa de Deus? Não, não custava. Não custava nada.

Quer dizer, na verdade, custa. Custa a fortaleza, a coragem de dizer a verdade para um mundo que desesperadamente se agarrou num punhado de engodos como se esses fossem uma nova revelação.

Não apenas isso. Poder-se-ia colocar a água benta no seu devido lugar, bem na entrada da Igreja e, o álcool gel, bem adiante, numa posição de segunda importância, que é o seu lugar, porque, como todos nós sabemos, de nada adiante salvarmos a nossa vida biológica se perdermos a nossa alma, a nossa vida espiritual.

Por isso, lembremos e, se possível for, procuremos não nos esquecer que, da mesma forma que a majestade divina se revela nos pequenos detalhes, o diabo, com suas maquinações, oculta-se maliciosamente nos mais variados pormenores e, infelizmente, são muitos os detalhes que desdenhamos e muitíssimos os pormenores que ignoramos por pura má vontade e tibieza de fé.


Nota do Editor: Dartagnan da Silva Zanela é professor e ensaísta. Autor dos livros: Sofia Perennis, O Ponto Arquimédico, A Boa Luta, In Foro Conscientiae e Nas Mãos de Cronos - ensaios sociológicos; mantém o site Falsum committit, qui verum tacet.
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