No documentário “Heal” (em Português, “Cura”), disponível no Amazon Prime, há um depoimento lancinante de Anita Moorjani, que, em Fevereiro de 2006 chegou ao final de uma luta de quatro anos contra o câncer. A sua família foi chamada para a despedida e seu corpo finalmente entrou em completo colapso, o que a medicina chama de Falência Múltipla de Órgãos. Anita teve então uma experiência compatível com o que se chama de Experiência de Quase Morte (não gosto muito do termo, mas foi consagrado pelo uso). Ao sentir-se desprendendo de seu corpo e da experiência terrena, Anita teve a sensação de amplificação de consciência e entrada em contato com um amor infinito, assim que encontrou seu falecido pai, com quem tivera uma relação conflitada e infeliz a partir de sua adolescência. De alguma forma ela passara toda a sua vida com a sensação de tê-lo decepcionado, o que é importante em todas as famílias, mas é particularmente dramático numa família de origem hindu. Apesar de toda essa relação de dor, o que ela conseguia sentir apenas aquele Amor Infinito e Incondicional pelo seu pai. Não havia mais dor nem decepção entre eles. Num estado de absoluta clareza ela entendeu por que estava tão doente: cada decisão e cada escolha em sua vida tinha sido tomada a partir do Medo. Neste estado percebeu que, se optasse por voltar à sua vida, poderia interagir com as causas de sua doença. Anita viu-se acordando na UTI e, nas semanas seguintes, viu os tumores que infestavam todo seu organismo desaparecerem e sua força retornando até sua alta, inteiramente curada. Existem vários estudos sobre esses casos, catalogados na medicina como de remissão espontânea, já que chamar de milagre não ia pegar muito bem. O que acontece nesses casos em que a capacidade de reparação do organismo humano se manifesta de maneira paradoxal e aparentemente, aleatória? Anita, como a autora do documentário comenta, teve uma mudança radical de uma forma de funcionamento do medo para o amor. Em seu estado de clareza, percebeu como anos de auto recriminação e de mágoas consigo mesma tinha se manifestado como doença, e desde então fez um pacto interior de nunca mais se maltratar, nunca mais deixar de ser gentil e amorosa consigo mesma e com as pessoas que a cercam. Anita é um exemplo completo de alguém que conquistou sua autoestima? Na minha opinião, ela conquistou uma capacidade imensa de Amor, na medida em que abdicou de todas as suas autos negativas que podemos citar: auto tortura, auto julgamento e auto crítica cruel. Passou a ser gentil consigo e com o Outro. Nosso planeta autoestima é uma usina de infelicidade infinita. A ênfase nas últimas décadas em criar pessoas com uma boa autoestima tem gerado efeitos exatamente contrários. Por que? As pessoas não deveriam ter uma boa autoestima? O caso ilustrado acima mostra claramente que a falta de afeto e cuidado consigo pode levar a doenças muito graves. Mas há uma diferença muito profunda entre autoestima e autocompaixão. A autoestima se baseia frequentemente no ideal que projetamos para nossa vida. A pessoa que eu quero ser, as conquistas a realizar, os sonhos que vão se tornar realidade. Aqui vem o seu irremediável defeito: ela é sempre condicional e depende de projeções futuras. As mulheres e os homens ancoram a sua autoestima na capacidade de serem desejados/admirados. Com beleza física, com carrões, com fotos nas Redes Sociais que projetam vidas perfeitas e autoestima idem. Não precisa ser um grande terapeuta para saber que isso termina num beco sem saída. O ego é um senhor exigente e insaciável, que destrói vidas e ecossistemas. Ele sempre quer mais, e nunca dá uma boa nota aos nossos esforços. Amar ao próximo como a si mesmo para mim sempre foi uma estrada de duas vias. Não significa amar tanto o outro, ou a aprovação do outro, que eu tenha que me perder de quem sou e do que me tem significado. Não significa me comparar e estabelecer competições imaginárias de quem é mais atraente, mais rico, ou quem tem a maior autoestima. Amar ao próximo como a si mesmo significa que o amor pelo outro está em direta relação com a capacidade de amar a nós mesmos, com nossos defeitos reais e imaginários e nossas feridas. Anita percebeu o infinito amor que sentia pelo pai provavelmente chatérrimo que a vida lhe deu, na mesma proporção que conseguiu amar e aceitar a vida e seu lugar misterioso nela. Infelizmente é necessário para muitos as experiências limite e a proximidade da doença e da morte para a consciência poder saltar de uma vida regida pelo medo e dor para a aceitação primeiro, o amor depois. Isso pode ser uma prática. Comece se tratando com gentileza e compaixão, em vez de cobrar isso do outro. Ame a si mesmo como próximo. Nota do Editor: Marco Antonio Spinelli é médico, com mestrado em psiquiatria pela Universidade São Paulo, psicoterapeuta de orientação junguiana e autor do livro “Stress o coelho de Alice tem sempre muita pressa”.
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