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SEÇÃO
Crônicas
15/04/2022 - 06h39
Os bichos da Semana Santa
Rangel Alves da Costa
 

Na cidade inteira e região, todo mundo sabia que o padre Merinaldo virava bicho na Semana Santa. E também o fazendeiro Zezé Valentão e o rezador Totonho das Folhas. Dizem também que o afeminado Cicinho Rosado se transformava num terrível bicho. Mas este sempre negava, e dizia: “Não viro mais, pois já sou virado. E se eu virasse não seria bicho, mas uma bicha. E isso impossível de acontecer novamente!”.

Mas estes e outros nomes eram comentados por todo lugar. Assim que a Semana Santa se aproximava, então logo as conversas surgiam de canto a outro. E gente com medo de não acabar mais. Pessoas que depois da boca da noite se trancavam nos quartos e ainda assim tremelicando de medo.

Zelito Fofoqueiro logo dizia: “Tanto o padre Merinaldo como Zezé Valentão vira bicho, e não é invenção não, pois pura verdade. E assim também com o rezador Totonho das Folhas e Cicinho Rosado. E tem mais gente que se desanda em bicho feio e perigoso. Antes eu suspeitava, mas agora tenho certeza que Quiquinha de Edmundo também vira bicho, e do mesmo modo sua prima Cacilda do Pezão”.

E acrescentava o fofoqueiro: “Tenho como provar o que digo. Vejam se depois das dez da noite vocês encontram mais qualquer um desses em suas casas. Não encontra de jeito nenhum. E por quê? Ora, simplesmente porque tão pelos quintais, pelos tufos de mato, pelos monturos, pelas encruzilhadas, ao redor dos chiqueiros, que são os locais ideais para se transformarem em bicho, em lobisomens da Semana Santa”.

Destas feita, Zelito Fofoqueiro falava a verdade. Todos estes saíam de fininho de suas casas e, sem dizer aonde iam, de repente tomavam os caminhos escuros, no breu dos medos e medonhices, para se entufarem nos escondidos. No dia seguinte era possível avistar o mato aberto, o capim retorcido, a lama revirada, os locais onde eles se transformavam em horrendas e perigosas criaturas.

Como a transformação ocorria? Tudo dependia da sina triste de cada, do fadário penoso que cada um carregava. Dependendo do pecado cometido ou da paga pelo indevido, a pessoa apenas deitava por entre os tufos de mato e deixava que os mistérios da noite fizessem o restante da transformação. Outros sequer precisavam deitar, pois em determinado horário seus corpos eram como dilacerados por forças terríveis, fazendo surgir unhas afiadas e imensas, orelhas disformes, olhos avermelhados, pele peluda, pés retorcidos e garras em punhais.

Que cena mais terrível e assustadora. A pessoa jogada ao chão, estrebuchando, rodopiando, com tenebrosos grunhidos, com urros medonhos, para de repente levantar já com olhos de fogo, com boca gosmenta e dentes afiados, em busca de presa. Levantar a cabeça monstruosa em direção à lua, bater no peito com os braços disformes e uivar os mais terríveis dos uivos. E em seguida correr em direção aos quintais, às encruzilhadas, aos becos escuros, aos meios dos cemitérios, pelas ruas tomadas de escuridão.

Por que tão triste sina entre pessoas? A resposta certamente seria mais conveniente se chegasse da boca de Zelito Fofoqueiro, mas todos sabiam os motivos. Bater na mãe, praticar atos libidinosos com beatas desprotegidas, negar a existência dos anjos e santos, desvirginar a inocência, pular janela de mulher casada e se esconder debaixo da cama ante a chegada do marido, roubar calcinha de menina nova do varal.

E dizem que a sina triste de Cicinho Rosado, ou seu desatino em virar bicho em toda Semana Santa, foi ocasionada pelo seu costume de levar calcinhas dos varais para vestir, tendo as vermelhas e rendadas como preferidas. Mas o que até hoje ninguém conseguiu explicar era como uma calcinha vermelha cabia num lobisomem imenso, num ser monstruoso e horrendo, e que saía se rebolando e cantarolando: “Vou te pagar, vou te pagar!”.


Nota do Editor: Rangel Alves da Costa é poeta e cronista. Mantém o blog Ser tão / Sertão (blograngel-sertao.blogspot.com.br).

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