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Opinião
12/02/2022 - 05h51
Telegram, fake news e a Justiça Eleitoral
Solano de Camargo e Caio Miachon Tenorio
 
Bloquear para não resolver

Com intuito de evitar a disseminação de notícias falsas e combater as fake news nas últimas eleições, em agosto de 2019, o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) lançou o Programa de Enfrentamento à Desinformação, que contou com a colaboração de inúmeras instituições públicas e privadas, dentre as quais a Câmara dos Deputados, o Senado Federal e principais plataformas de mídias sociais e de serviços de mensagens, como Google, Facebook, Instagram e WhatsApp.

Os resultados obtidos o tornaram um dos principais pilares de combate às fake news nas eleições de 2020. Assim, em agosto de 2021, o TSE decidiu dar continuidade ao projeto, editando a Portaria nº 510, que instituiu o Enfrentamento à Desinformação em caráter permanente.

Se os desafios para enfrentar as fake news são imensos para as mídias sociais envolvidas com o programa, a situação piora em demasia caso outras plataformas, também muito populares e bastante utilizadas pelos brasileiros, não participem dos esforços conjugados. Esse é o grande desafio enfrentado atualmente no país, por conta da plataforma mantida pelo Telegram.

Diferentemente de outras redes sociais, o Telegram nunca fez parte do Programa de Enfrentamento à Desinformação criado pela Justiça Eleitoral brasileira. Ao contrário: apesar de possuir uma expressiva rede de usuários em território nacional, a plataforma ainda não possui representação jurídica no Brasil.

Em dezembro de 2021, com objetivo de discutir possíveis formas de cooperação no combate à desinformação, o presidente do TSE, ministro Luís Roberto Barroso, noticiou ter enviado um ofício ao diretor executivo do Telegram, Pavel Durov, sugerindo um encontro para avaliar possíveis ações a serem tomadas em conjunto. Contudo, a tentativa de contato, segundo a imprensa brasileira, teria sido inócua, não tendo havido resposta dos representantes da empresa até o momento em que este artigo é escrito.

Essa falta de interlocução entre Telegram e Justiça Eleitoral ascendeu a discussão sobre uma eventual determinação judicial visando o bloqueio do aplicativo para os usuários brasileiros.

Antes de adentrar na questão da constitucionalidade desse eventual bloqueio, é importante averiguar a eficácia jurídica da comunicação que se pretendeu estabelecer entre o tribunal brasileiro e a empresa.

Segundo declara o aplicativo em seu site, sua sede é baseada nos Emirados Árabes Unidos, especificamente em Dubai. Por seu turno, segundo as notícias veiculadas pelo TSE, o ofício teria sido encaminhado digitalmente a Durov, cidadão francês (desde novembro de 2021, ocasião em que supostamente renunciou à nacionalidade russa), por sua vez, domiciliado em São Cristóvão e Nevis, um pequeno Estado independente localizado nas Antilhas britânicas.

Seria possível considerar que o ofício enviado pela secretaria da presidência do TSE, sabe-se lá se por e-mail ou por outra modalidade de comunicação permitida pelo próprio Telegram, poderia ser considerado uma comunicação oficial segundo as normas do direito internacional?

Havendo notícias de que a sede do Telegram se situa em Dubai e que a residência habitual de seu proprietário se localiza em São Cristóvão e Nevis, qualquer eventual conclusão de que houve desobediência ou falta de colaboração do preposto da empresa, sem o trâmite da cooperação jurídica internacional, parece precipitado. Aliás, a própria competência internacional das cortes brasileiras para demandar o Telegram, quando comparada a outras jurisdições, parece exagerada: segundo o artigo 15 do Código Civil napoleônico, vigente na França há mais de um século, a nacionalidade francesa recém adquirida por Durov faz com que as cortes locais sejam automaticamente competentes para receber quaisquer medidas judiciais em face do proprietário do Telegram, assim como as cortes de Dubai (sede da empresa) ou de São Cristóvão e Nevis (domicílio de seu presidente). Em síntese, não parece correto afirmar que o ofício enviado a Durov possa ser considerado eficaz no Brasil, para efeitos de se declarar sua desobediência perante as cortes nacionais ou mesmo que tenha havido má vontade da empresa frente ao problema das fake news nas eleições de 2022.

Analogamente, a possibilidade de bloqueio do Telegram no Brasil, ainda que se considere uma eventual eficácia negativa do ofício enviado fora dos padrões cooperacionais (e diplomáticos), não é menos polêmica. Embora o bloqueio seja questionável à luz do princípio da razoabilidade e da proporcionalidade, a suspensão das atividades do aplicativo é também polêmica frente às disposições do Marco Civil da Internet, visto que as medidas punitivas previstas pelos incisos III e IV do artigo 12 ainda não se encontram regulamentadas. Como ainda não existe um decreto regulatório que defina o procedimento a ser seguido para apuração e aplicação das penalidades previstas pelo artigo 11, logo, as penalidades dos incisos III e IV do artigo 12 do Marco Civil (suspensão temporária e proibição das atividades) parecem ser, por ora, inaplicáveis.

Uma das ideias em debate é de que o Telegram não pode operar no Brasil enquanto não possuir representação no território nacional. Porém, vale aqui uma reflexão sobre o alcance do verbo operar: se a empresa não possui quaisquer representantes no país e seu produto é utilizado via rede mundial de computadores, quem teria “operado”, propriamente, para que a disseminação de fake news ocorresse? Os usuários ou a plataforma? Em se tratando de comunicação digital, “opera-se” a transmissão da fake news entre o emissor e o receptor, independentemente da atuação ou da existência da mídia utilizada, seja ela virtual ou analógica. Caso a fake news tivesse sido propagada no Brasil entre brasileiros - por hipótese - na mensagem escrita num cartão postal adquirido no Zimbabwe, teria a gráfica africana que imprimiu o material “operado” no país? Evidentemente, embora haja uma justa expectativa de que as grandes empresas de internet colaborem com as autoridades mundiais no combate às fake news, o argumento de que não há “operação” no Brasil não parece ser o mais convincente para se justificar o bloqueio do aplicativo a milhões de brasileiros.

Além disso, a interrupção do aplicativo parece ser, a toda evidência, desproporcional, ensejando a violação de preceitos fundamentais previstos pela Constituição, como a liberdade de expressão e o acesso à comunicação. O bloqueio punitivo do WhatsApp está sendo julgado pelo STF na ADPF 403 e ADI 5527 há alguns anos, sem ainda qualquer conclusão definitiva.

Do ponto de vista prático, o bloqueio do Telegram no Brasil também seria um grande desafio. Primeiro, porque ele teria que partir de provedores de backbone e de acesso à internet, que deveriam ser obrigados a impedir o acesso dos usuários brasileiros ao aplicativo, alterando-se a tabela de nomes de domínio DNS. O problema é que essa medida pode ser burlada, por exemplo, pelo uso de tabelas DNS (disponíveis na internet) por parte de usuários mais experientes.

Outra medida seria o bloqueio do endereço IP do Telegram. Nesse caso, também existem recursos disponíveis para driblar a medida, como a utilização de um VPN.

De todo modo, independentemente da efetividade questionável de tais medidas, a reflexão que deve ser feita é se a suspensão ou o banimento do Telegram é a melhor solução para se combater as fake news, não obstante o fato de que pelo menos 11 países já declararam ter bloqueado o uso da ferramenta em suas respectivas jurisdições (como a própria Rússia, de onde o aplicativo se originou). Como dito, é muito provável que muitos usuários que se encontram nessas localidades possam estar burlando esses bloqueios, não obstante os esforços das respectivas autoridades locais.

O Brasil tem vivido um profundo e continuado desapontamento com suas instituições. Há um inegável vácuo entre as aspirações populares e o establishment político, em que a notória criminalização da política, causada pelos seguidos escândalos que tomaram conta do cenário nacional nos últimos anos, parecem justificar a sensação de falta de legitimidade de muitas de nossas lideranças. Porém, informação equivocada (ou fake) se combate com (boa) educação e fontes confiáveis. Jamais com restrição ou censura.

A experiência tem mostrado que a concentração de esforços visando identificar e punir os financiadores das fakes news, em conjunto com uma ampla campanha de esclarecimentos à população, é a forma mais eficaz de atuação. Embora não exista ainda uma “bala de prata” para resolver esse grave problema que aflige toda a sociedade contemporânea, o simples e puro bloqueio do Telegram não parece ser a melhor alternativa.


Nota do Editor: Solano de Camargo, presidente da Comissão de Privacidade e Proteção de Dados da OAB SP. Caio Miachon Tenorio, membro da Comissão de Privacidade e Proteção de Dados.

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