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Opinião
20/01/2022 - 05h30
O barulho em torno do criado-mudo
Daniel Medeiros
 

Se você entrar agora no site da Amazon e escrever (ou digitar) “criado-mudo”, vai aparecer uma resposta automática dizendo que você não deve usar essa expressão porque ela é racista. Se você é uma pessoa que repudia práticas racistas de qualquer natureza, certamente ficará desconcertada com essa imputação e descobrirá rapidamente que o “correto” é escrever mesa de cabeceira. E só então aparecerão diversas ofertas para a sua livre escolha. E melhor, com a consciência limpa: você não é racista.

À despeito dessa contribuição tão edificante do maior site de compras do mundo, a discriminação e a violência contra negros não param de crescer. O mapa da violência é um exemplo claro: ser jovem e negro no Brasil faz com que se tenha 17 vezes mais chances de ser morto pela polícia do que se a pessoa for jovem e branca. Mesmo que todo mundo passe a dizer “mesa de cabeceira” três vezes ao dia, em voz alta, na praça.

Mas, o mais curioso não é o empenho em ensinar como falar coisas prosaicas sem ser racista: é que a associação da expressão criado-mudo com a escravidão é simplesmente falsa. Não há nenhuma relação entre escravos que serviam seus donos no Brasil do século XVIII, XIX, com o movelzinho que serve para colocar o livro de autoajuda que você lê antes de dormir e os remédios para dor de cabeça que você toma assim que acorda. É como o verbo denegrir, outro enjeitado termo “racista” que é motivo de cancelamentos massivos nas redes sociais dos incautos que desavisadamente o praticam. Termos que ficam com a reputação manchada para sempre. Ou seja, são denegridos.

Mark Lilla, em famoso artigo publicado no The New York Times, em novembro de 2016, chamado O fim da identidade Liberal, no qual anteviu a derrota de Hilary Clinton para Donald Trump, já destacava que a onda do politicamente correto atingia pessoas que nunca alimentaram qualquer comportamento discriminatório e que o mal-estar provocado por essas acusações só serviu para afastar esses grupos moderados do campo democrata, enfraquecendo as chances de um governo empenhado nas causas reais e urgentes para o país, como a desigualdade social e as políticas ambientais. Afirmava o autor: “A política de identidade está produzindo uma geração de liberais e progressistas narcisistas e inconscientes das condições existentes fora dos seus grupos autodefinidos, e indiferentes à tarefa de atingir os estadunidenses em todos os âmbitos da vida.”

O importante a destacar é que fazer a crítica dos excessos do controle terminológico identitário não implica, em absoluto, deixar de reconhecer o problema da marginalização de muitas dessas minorias. O que tem acontecido, porém, é que fazer a crítica tem se tornado um problema grave, na medida em que há uma rápida obstrução e um movimento em pinça de acusação e cancelamento que impedem que a crítica seja desenvolvida em seu campo natural, o do debate público, marcado pela liberdade de expressão e pela civilidade da refutação fundamentada. O caso da escritora J. K. Rowling é emblemático. Aliás, lembro que ela grafou seu nome com duas consoantes para escapar da estigmatização do autor feminino e buscar um lugar em um universo no qual o machismo ainda é prevalente. Pois agora, a criadora do universo de Harry Potter foi desconvidada do especial de vinte anos do primeiro filme da série, para evitar constrangimentos, em face de uma declaração que ela fez e que foi considerada politicamente incorreta. Mas essa é só uma gota no oceano de posturas correcionais que têm gerado pânico nos mais diversos produtores de conteúdo e, muitas vezes esse pânico se transforma em ressentimento e esse ressentimento acaba alimentando os oportunistas de plantão que ganham visibilidade defendendo justamente a discriminação que essas posturas tentam combater. É o paradoxo do politicamente correto servindo de lenha para a fogueira dos que defendem a perpetuação da desigualdade. Prova de que o clichê “de boas intenções o inferno está cheio” está mais atual do que nunca.

O que deve ser ressaltado, como lembra a pensadora Hannah Arendt, é que não existem direitos humanos sem políticas protetivas dos direitos humanos. São essas que constituem a garantia necessária a uma vida digna e elas só podem ser elaboradas e aplicadas por governos comprometidos com o bem-estar geral da população, fundamentados em regras de aplicação geral, reconhecendo a isonomia corretiva necessária para compensar as profundas desigualdades ocorridas ao longo da nossa história sem perder, porém, o horizonte de um projeto de sociedade múltipla em identidades e igual em direitos e deveres. Fraturar essa ideia de igualdade cidadã em nome do reconhecimento multifacetado das identidades pode funcionar, ao contrário do que se parece desejar, empurrando para os grupos conservadores a ideia de Pátria e de Unidade, de Sociedade e de República, (conquistas iluministas, nunca esqueçamos), e fortalecer justamente aqueles que mais se distanciam da busca por respeito e reconhecimento de direitos para todos. Como lembrou Emmanuel Macron, em entrevista para a revista Elle de primeiro de julho de 2021: “Estou do lado universalista. Não me reconheço em uma luta que remete a cada um a sua identidade ou seu particularismo.”

O criado-mudo não é uma expressão racista. Isso é falso. Mesmo que fosse, sua manifestação não deveria ser repudiada e criminalizada, mas contextualizada e pedagogizada, pois quem desconhece não comete um crime. Pelo contrário, torna-se grato por aprender sem ser acusado. Ao ser acusado, sente-se injustiçado e ressente-se. Ressentimentos são peças-chave da política de divisão que vigora nos nossos tempos. Por isso, deve ser combatida. Devemos buscar resgatar campos comuns de aproximação, suspendendo o dedo acusador e substituindo-o pela mão estendida ao bom diálogo e ao acordo em torno de uma pauta de direitos para todos e de resgate dos mais vulneráveis. O resto é só comida para lobos.


Nota do Editor: Daniel Medeiros (danielmedeiros.articulista@gmail.com) é doutor em Educação Histórica e professor no Curso Positivo.

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