Há um silêncio estranho nele. Quase sem palavra, seus olhos passeiam desde a curva do rio aos caminhos molhados de mais adiante. Avista os montes e as serras, as casas do outro lado e os bichos que passeiam nas margens. Parece morar ali, no rio, na beira do rio. Sua casa parece ser o seu barco. E é. Sua moradia parece ser também o rio. E é. Do rio-casa tudo conhece. Transborda de contentamento com as águas muitas, com as enchentes. Entristece e quase definha quando sua casa-rio parece também definhar, numa magrez de causar dó e sofrimento. Não usa carranca na sua proa. Não precisa. As estranhezas do rio não assustam mais. Tornou-se amigo do Nego-d’água, da pedra que fala e da correnteza que assovia. Não é de muita leitura, mas todo dia lê um imenso livro. Quando não tem nenhum visitante que queira fazer um passeio pelos arredores, então abre o seu imenso e vai folheando cada escrito de vida. Seu livro é o rio, o Livro do Rio, sua grande leitura é feita no Livro das Águas, mas estranhamente encontra o mesmo escrito a cada página que vai passando: “Sou o Francisco, sou o Rio. Sou o Velho, o Velho Chico do Rio. Sou aquele que vem e que passa, sou aquele que sofre por não mais poder alimentar o filho do rio como antigamente fazia. Sou o Pai desse povo e dessa ribeira-vida, sou o Pai e filho de um Pai Maior que me acalanta e diz: Seu filho padece, mas não findará. O rio padece, mas não findará...”. Pescador, um pescador do São Francisco. Ou simplesmente canoeiro, vez que as hidrelétricas espantaram os peixes do rio, e agora ele apenas leva um e outro a passeio pelo que resta do leito. Não importa o seu nome. Um filho das águas. Apenas. Nota do Editor: Rangel Alves da Costa é poeta e cronista. Mantém o blog Ser tão / Sertão (blograngel-sertao.blogspot.com.br).
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