Quando era criança e troteava na praça montado num cavalo de pau, agitando reluzente espada de papelão, eu enfrentava inimigos imaginários em defesa de minha família e a serviço da justiça. Quando adolescente, a política estudantil era minha praça e, também ali, me percebia contendo adversários reais na já então acirrada disputa ideológica estudantil. Os “vermelhos” corriam os corredores do Colégio Júlio de Castilhos entoando cantos de guerra aos “reacionários”. E nós - hip, hip, hurra! - vencíamos as eleições. De um ministro do STF espera-se mais do que de um dirigente de grêmio estudantil. No lombo de que cavalo de pau, ou em que corredor de colégio, terá saído a ideia que fez alguns membros do Supremo se verem como musculosos salva-vidas judiciais de uma democracia sob gravíssimo risco de afogamento? Não fossem suas consequências, a pergunta acima pareceria uma curiosidade retórica. No entanto, é pelo desvario na torre da guarita de salvamento que voltamos a ter presos políticos e brasileiros refugiados. Foi ela que colocou bandeira preta no sereno balneário da liberdade. Foi ela que impôs silêncios, censuras e autocensuras. Como determinam os protocolos dos Laboratórios de Linguística Aplicada ao Caso Brasileiro de 2018 (vocês sabem de que estou falando), criou-se um inteiro vocabulário para essas idiossincrasias: milícias digitais, atos antidemocráticos, discursos de ódio, desabono das instituições, recusa ao mandamento vacinal, negação do culto às urnas sem impressora e, claro, fake news para toda divergência. A cada uma foi atribuído caráter pré-criminal e protopenal a justificar, segundo a gabolice de seus autores, as “corajosas” medidas que se seguiram, entre eles os inquéritos sem fim neste mundo e nesta vida. Não estou em torre alguma, ando com os pés no piso dos fatos e meus guarda-costas são os cães da vizinhança. Meu prisma, portanto é o do populacho, da plebe, da ralé, à qual nenhuma razão da Razão precisa ser servida e da qual o silêncio é sempre bem-vindo. A esse povo, outrora aplicavam-se as palavras cidadãos, sociedade, e até - vejam só! - “nação brasileira”, com o poder, direitos e garantias assegurados pela doutrina da “soberania popular” e pela Constituição. Mas o Brasil foi mudado pela guarita. Se o aparelho de Estado protege a criminalidade; se a corrupção é recompensada, os corruptos exaltados e a impunidade é o objetivo final; se os poderes confundem conluio com harmonia, se uma dúzia de líderes submete o Congresso inteiro e o povo não importa; se as competências são invadidas e o Executivo não consegue governar porque fantasmas alheios se agigantam contra ele; pergunto: que pode o povo, ex-titular da soberania popular, ignorado por seus representantes, cujos canais de comunicação foram silenciados, porque mal vistos desde a guarita? A democracia agoniza, as instituições já não conseguem esconder suas enfermidades e nelas foram adiadas para 2022 as esperanças nacionais. Deus ilumine e conduza a nação no caminho até as urnas de outubro. Nota do Editor: Percival Puggina (77), membro da Academia Rio-Grandense de Letras, é arquiteto, empresário e escritor e titular do site www.puggina.org, colunista de dezenas de jornais e sites no país. Autor de Crônicas contra o totalitarismo; Cuba, a tragédia da utopia; Pombas e Gaviões; A Tomada do Brasil. Integrante do grupo Pensar+.
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