As pessoas pretas no Brasil vivem pior do que as pessoas brancas, independentemente de qualquer situação. Vivem pior porque ganham salários menores, e ganham os salários menores porque ocupam cargos com remuneração menor. Se forem mulheres pretas, aí, mesmo em cargos iguais, a remuneração é, em média, menor. Mas as pessoas pretas vivem pior por razões ainda mais agudas: são o maior percentual entre os presos; são as que mais morrem em ações policiais; são as que sofrem maior abordagem em lojas e nas ruas; são o maior percentual entre as pessoas que moram nos locais com menor presença do Estado, isto é, sem saneamento, escola, saúde, segurança. As razões de toda essa disparidade podem ser resumidas em dois tópicos: o passado e a persistência do passado. Por mais de 300 anos, as pessoas pretas foram usadas como mão de obra compulsória para produzir riquezas que, evidentemente, não se destinavam a elas. E o nome básico disso é exploração. Como já dizia o advogado e padre jesuíta José André Antonil, no século XVIII: “Os negros são as mãos e os pés dos senhores de engenho.” Simples, claro e direto. Sem a presença das pessoas pretas, o país, como o conhecemos, não existiria. Passados 300 anos, veio a abolição, mas antes dela, bem antes dela, os senhores buscaram formas de substituir a mão de obra escrava por outra forma de exploração que mantivesse seus rendimentos e inserisse o Brasil de forma “mais apropriada” no cenário internacional. A imigração europeia matou dois coelhos com uma só cajadada: mão de obra barata e ainda a chance de apagar o rastro das pessoas pretas que agora não tinham mais serventia. O quadro de Modesto Brocos, de 1895, retrata essa nova utopia da classe dirigente brasileira. Em 1888, vem a abolição; em 1889, proclama-se a República e, como em um passe de mágica, os novos governantes afirmaram que o país estava pronto para um futuro renovador, livre das amarras do passado. O pardo Rui Barbosa, primeiro ministro da Economia do governo provisório, queimou todos os registros de cartório sobre compra e venda de escravos no Brasil, incluindo os livros de matrícula, apagando uma fonte inestimável para entender o longo passado de violência contra as pessoas pretas. No hino da República, composto apenas dois anos após o fim da escravidão, no primeiro verso da quarta estrofe diz, sem cerimônia: “Nós nem cremos que escravos outrora / Tenha havido em tão nobre País”. Na nova Constituição, de 1891, os analfabetos não podiam votar. O censo de 1872 informa que mais de 90% dos negros eram analfabetos. Touché. E desde então, esse manto de interesses econômicos e de preconceito racial vem encobrindo a marginalização a que foram relegadas as pessoas pretas no país, transmitindo, de geração em geração, a herança desse abandono. E essa barreira funcionou - e ainda funciona - como nível de identificação e de acesso aos benefícios da sociedade moderna, distinguindo o que é “normal” do que é “estranho”. Uma pessoa preta com carrão, com celular de último tipo, é suspeita. Uma pessoa branca, bem sucedida. Uma pessoa preta com jaleco branco, é funcionária da limpeza; uma pessoa branca, é médica; uma pessoa preta com terno e gravata, é pastor evangélico; uma pessoa branca, é doutora. E a lista dessas comparações não tem fim. Verificar a persistência da violência contra as pessoas pretas no Brasil é uma tarefa fácil para qualquer cidadão com um mínimo de interesse. Basta responder às seguintes indagações: quantos professores negros você teve? Quantos médicos negros atenderam você? Quantos gerentes de banco ou diretores de empresas negros você conheceu? Juízes, generais, senadores, governadores? Busque as fotos de formatura das faculdades de Medicina por todo o país. E as de Direito. Busque as fotos dos encontros dos operadores do mercado financeiro, dos membros de conselhos de administração. As malhas apertadas do tecido social construído à partir da escravidão ainda impedem, tenazmente, a ascensão profissional, social e econômica das pessoas pretas. Como diz o ditado, saber disso, conhecer isso, é “preto no branco”. É cabal. É evidente. Não é uma questão de não ver, mas de não querer ver. Porque ver implica. Aí há o risco de ser atingido por alguma reivindicação que afete privilégios naturalizados em direitos. As discussões sobre as cotas, por exemplo, é sobre isso: o medo de perder um privilégio sob a falácia de que o “melhor deve ser recompensado”. A ideia absurda de um “racismo reverso” é sobre isso; a afirmação de que “somos todos brasileiros e ninguém deve nos dividir” é sobre isso, de uma maneira rasteira e pueril. A consciência negra também é sobre isso: sobre a percepção de que as pessoas pretas foram exploradas e depois marginalizadas enquanto os dirigentes posaram diante do mundo como “civilizados”, construindo padrões jurídicos inclusivos, com leis abrangentes e uma Constituição avançada, “cidadã”, mas fechando os olhos para as práticas que ignoram quase todas essas determinações, permitindo que as estatísticas se perpetuem em demonstrações evidentes de racismo, discriminação e preconceito. A consciência negra é a percepção de que a cidadania não deve e não pode ter cor. E que essa realidade só poderá ser construída com resistência contra os que ignoram e contra os que se opõem, resistência lúcida, abrangente e persistente. Por um país plural e igual em direitos. Contra todos os que só querem “branco no preto”. Nota do Editor: Daniel Medeiros (daniemedeiros.articulista@gmail.com) é doutor em Educação Histórica e professor no Curso Positivo.
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