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Crônicas
27/10/2020 - 06h33
Não me chame de guerreiro
Henrique Fendrich
 

Você me chama de guerreiro e diz que eu hei de vencer a minha batalha. Agradeço pelas palavras, porque sei da sinceridade do seu coração e do desejo de que as coisas fiquem bem comigo. Mas, por favor, não me transforme em herói - e ainda por cima em herói de guerra! Não há nada de heroico na guerra. A guerra é a vergonha da nossa espécie. Isso parece até uma coisa meio óbvia de dizer, mas bem sei que os feitos da guerra ainda são muito valorizados entre nós, mesmo entre aqueles que não desejam que ela aconteça. Eu, porém, não quero valorizar a guerra.

Se um de nós, isoladamente, movido por vis paixões ou interesses, matar outro ser humano, será chamado de assassino e julgado como tal. Contudo, se de um nós estiver devidamente autorizado por um Estado ou Nação, imbuído de algum “motivo justo” para a coletividade, poderá matar outro ser humano sem que seja censurado de alguma maneira - e pode até ser que seja recompensado pelas mortes que foi capaz de provocar. Esse tipo de morte já não recebe o nome de assassinato, mas “ato de bravura”. Trata-se do tipo de assassinato que é aceito socialmente. É nisso que penso quando me chamam de “guerreiro”.

Uma guerra só é possível quando se apaga os vestígios de contradição. O mundo dos guerreiros é um mundo onde um lado é bom e o outro é mau, e não há qualquer espécie de concessão ao inimigo. Se alguém se atentasse para a grande complexidade da vida, perceberia que não é muito aquilo que separa um lado do outro - e, sem esse distanciamento, qual é a justificativa para se fazer a guerra? Nem eu sou tão bom quanto penso e nem os outros são tão ruins quanto eu preferia que fossem. Pode ser que nem o mal que me acomete seja, em si, um mal verdadeiro.

Não ignoro, é claro, que aquilo que me disse seja apenas uma metáfora, muito frequente em casos como o meu, de gente que luta para sobreviver. Mas é exatamente isso o que eu me questiono: há mesmo algum tipo de mérito em se lutar para sobreviver? É, afinal, algo que todo o mundo animal faz de forma instintiva, sem que disso resulte alguma celebração. Também eu, animal que sou, faço aquilo que está ao meu alcance para continuar vivendo, mas não seria isso, meramente, o fruto do nosso medo da morte?

E à nossa irresignação diante da finitude da vida e da própria ordem natural das coisas, em um mundo onde nada permanece e tudo se transforma, você chama de “ser um guerreiro”. Mas serei mesmo um valente simplesmente por não aceitar a minha própria morte e por me debelar e me sacudir e fazer o que for possível para que ela se afaste de mim? Eu devo mesmo deixar bem claro à morte que ela só irá me levar se “passar por cima do meu cadáver”? Devo realmente me insurgir contra ela e mostrar que, caso ela aconteça, será apenas contra a minha vontade e a despeito de todos os meus esforços para derrotá-la? Não estou tão certo de que deva ser dessa maneira.

Se isso se trata realmente de uma batalha, se a morte é mesmo o inimigo, não poderia essa guerra ser tão falsa como todas aquelas que, com espantosa diligência, praticamos contra outros seres humanos? Quem sabe tudo isso não seja mais do que a mesma tentativa de fugir das contradições, negando toda a complexidade da nossa existência. E talvez a morte, no fim das contas, seja mais parecida com a vida do que gostaríamos de admitir. Se for assim, já não se saberá com certeza o que é bom e o que é ruim. E quem é que poderia saber, afinal? Eu é que não sei.

Então, meu amigo, perdoe isso que talvez lhe pareça um preciosismo de velho, mas, reconhecendo todo o afeto que você tem pela minha pessoa, peço, simplesmente, que não me chame de guerreiro.

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