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Opinião
06/08/2020 - 06h42
Uma pedrinha no sapato
Dartagnan da Silva Zanela
 

Tem um trem, lá pras bandas da Amazônia, chamado pelos índios de “uirarí”, que é extraído de uma planta chamada por eles de “curare”. Esse trem é um diacho de venenoso. É usado para caçar. Basta um cadinho na ponta da flecha, ou do dardo, que qualquer animal que for atingido entregará os pontos.

Dizem que a vítima primeiro fica atônita e, logo em seguida, vem as primeiras vertigens junto com alguns vômitos e, em dois palitos, já surge do nada o meme do caixão. E, ao que parece, a bagaça não tem antídoto não.

É. Esse tal de “uirarí” é admirável mesmo. Mortalmente admirável.

Falando-se em admirável, se tem um caboclo que tem uma vida porreta é o tal de Santo Antão, também conhecido como Santo Antônio do Egito. É difícil não afogarmos nossos zóios em lágrimas com as notícias de sua vida que nos chegam através das páginas escritas por seus biógrafos.

Há uma passagem, que agora compartilho, que remonta os primeiros anos após a sua conversão onde, após um período de jejum e oração, Nosso Senhor apareceu e disse a Antão que ele deveria aprender a rezar como o sapateiro de Alexandria para ganhar o reino dos Céus.

Ao ouvir isso o homem levantou-se e zaz zaz colocou-se em passo acelerado na direção da cidade para ver se encontrava o dito cujo do sapateiro para aprender direitinho as rezas.

Procurou, procurou, até que lhe mostraram o fazedor de sapatos, silente, sentado à porta de sua oficina, de olhar sereno, pernas cruzadas, costurando o couro enquanto via as pessoas perambulando pra lá e pra cá. Sem demoras foi até ele.

Os dois ficaram horas e horas assuntando sobre a vida e a respeito dos mais variados assuntos até que chegaram na história da conversão do humilde sapateiro. Ele contou a Antônio tudo como aconteceu e, então, ele tomou peito e perguntou ao homem como ele rezava e, mais ou menos desse jeito, respondeu: sabe moço, eu fico aqui, o dia todo, cumprindo com minhas obrigações e vendo as pessoas viverem as suas vidas e aí, digo nos átrios do meu coração, todo dia, o dia todo, a seguinte jaculatória: todos irão se salvar, todos, menos eu.

Todos irão se salvar, todos, menos eu.

Caramba. Ainda hoje, mesmo depois de tantos anos que li pela primeira vez essa historieta, me arrepio. Não preciso nem dizer, mas o farei: Santo Antão aprendeu direitinho como rezar. Quanto a mim, não posso dizer o mesmo, tendo em vista que sou, como diz Rubem Braga, um cretino por profissão. Que vergonha. Que baita sem vergonha.

Saindo dos primeiros séculos da Cristandade, cá estamos nós, em meio a um mundo cuja mentalidade se vê agrilhoada pelos trejeitos e cacoetes politicamente corretos que, enquanto subproduto do marxismo e de modo sorrateiro, nos adestram a agirmos duma forma bem diferente.

Uma pessoa, quando se identifica com um grupo, com um partido, com um movimento político [dito social] ou algo que o valha, passa a crer que aderiu a construção de um mundo “mais melhor de bão” e, por isso, acaba por acreditar que ela e os seus companheiros estão acima de qualquer julgamento, sentindo-se autorizados a fazer qualquer barbaridade, tendo em vista que tudo isso é em nome de uma boa causa. Aliás, toda monstruosidade é perpetrada em nome de uma boa causa.

Por isso, nesse caso, a reza é diferente da prece do Santo: todos irão se salvar se nós, os limpinhos, dissermos que elas podem ser salvas [e Deus que não se meta no assunto].

Quanto aos condenados, esses serão cancelados pelo eco das vozes despersonalizadas da multidão agrupada em torno das palavras de comando que emanam do monstro ideológico desprovido de coração que amortizou a consciência de cada membro da turma.

É. Espírito de legião é assim mesmo. Bem desse jeitão.

De todos os cacoetes mentais politicamente corretos que foram disseminados pelos grupos que se arrogam a condição de porta-vozes dos “frascos” e “comprimidos”, e que engessam qualquer possibilidade de diálogo, temos um que, no mínimo, é curioso: o tal “lugar de fala”.

Vejam só como são as coisas: se uma pessoa não pode falar nada à outra porque ela não viveu uma vida similar a dela, porque não sofreu o que ela sofreu, de cara temos duas perdas tremendas. A primeira é a própria inviabilidade do diálogo, tendo em vista que ninguém pode dizer nada a ninguém porque cada um está no seu quadrado e não tem como se colocar no redondo do outro.

Segundo: se apenas e tão somente os membros do meu clubinho podem falar a respeito de nossas incongruências, nós acabamos inviabilizado qualquer possibilidade de empatia, de construção de pontes para que os outros possam ver o mundo através dos nossos olhos e vice-versa.

E não é só isso. Duma forma muito sutil e sofisticada, os indivíduos que aderem a esses subprodutos ideológicos acabam se colocando acima de qualquer crítica, acreditando, sinceramente, que eles seriam almas puras, redentoras da humanidade; não porque são como o sapateiro de Alexandria, mas porque são filiados ou simpáticos a um partido político, ligados a um movimento dito social, com sua vida alicerçada numa ideologia totalitária que, como toda ideologia, promete a edificação do paraíso na terra por pessoas que, como elas, sentem-se incorruptíveis, apesar de serem apenas o que são.

Tal situação, como todos sabemos, acaba por estimular o aprofundamento das diferenças humanas de todos os naipes e, subjacente a isso tudo, temos o fomento dos mais variados tipos de conflito. Homens contra mulheres, negros contra brancos, homo contra héteros, tudo contra todos, reificando as minorias, usando-as como um reles instrumento para realização de seu projeto político de poder ao mesmo tempo que dizem ser seus inquestionáveis representantes.

É. E aí daqueles que ousarem não calçar o sapato identitário que lhes é imposto pelos porta-vozes “do bem”, do “ódio do bem”. Com certeza receberão na testa o “rótulo de besta”, de párias, para perambular num apocalipse sem juízo final, porque a sentença já foi dada por eles com base em suas crendices políticas.

Enfim, podemos dizer que o politicamente correto, com suas cizânias semeadas em todos os cantos do nosso triste país, seria o “uirarí” das tribos da “fofura totalitária” que prometem um dia construir um suposto “mundo mais melhor de bão” na base da calúnia e do rancor ideologicamente manipulando, agindo com virulência contra todos aqueles que não rezam na mesma capelinha do Butantã.

Mas esse “uirarí” tem antídoto. Tem sim senhor. É a oração do sapateiro de Alexandria que foi aprendida por Santo Antão.

É isso aí. Simples assim, por isso complicado. Complicado porque insistimos em continuar cultivando essa surrada pose bestial de cágado engajado e tranquilo.


Nota do Editor: Dartagnan da Silva Zanela é professor e ensaísta. Autor dos livros: Sofia Perennis, O Ponto Arquimédico, A Boa Luta, In Foro Conscientiae e Nas Mãos de Cronos - ensaios sociológicos; mantém o site Falsum committit, qui verum tacet.
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