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Crônicas
14/12/2018 - 06h40
Cozinhas e quintais
Rangel Alves da Costa
 

Quanta memória boa rebusco agora. Vejo-me caminhando em direção à cozinha da casa e, um pouco mais adiante, à porta troncha que dá passagem ao quintal.

Já não avisto nem minha avó nem sua avó. Minha bisavó subiu aos céus encantada de tempo. Agora só restam as cozinhas e os quintais nas lembranças.

Na cozinha, de barro batido ou na taipa mal-acabada, o fogão de barro tomando um canto inteiro. No barro estendido, blocos ou tijolos sustentando a grelha.

Boca de fogão aberta, faminta, querendo muita lenha e muito mais carvão. A madeira queimando vai se contorcendo como de dor de partida, e para logo virar brasa e carvão.

Por cima da grelha ou apenas dos blocos, sentindo a labareda e a fúria ardente do fogo em chamas, a panela de barro, a chaleira antiga, o tacho para fazer doces.

Depois de tudo cozido, preparado, fervido, as cinzas juntadas para serem recolhidas. Mais ao lado, no outro canto, uma trempe com pote em cima.

Pote pequeno, mas de boca graúda, sempre com água suficiente para que a caneca não se afundasse tanto. Abaixo, no fundo do pote, uma rodilha sempre molhada.

E também um pano todo branquinho para tampar a boca. Quando o pote fica suado, ou a rodilha para reter a água ou a lama vai se formar mais abaixo.

Um pouco acima do pote, penduradas na parede em pequenas forquilhas, três ou quatro canecas d’água, todas de alumínio e sempre brilhosas de tanto serem arejadas.

Ao centro, uma pequena mesa de madeira velha tendo por riba um jarro com flores de plástico. Não há casinha de antigamente onde não houvesse um jarro com flores mortas.

Flores de cinzas, acinzentadas, quase sem cor, mas tão cheias de vida naquele viver humilde. Endurecidas de tempo, quebradiças dos anos, mas sempre ali.

Um alguidar em cima de uma banquinha, uma fruteira por riba do guarda-comida de pouco uso. Já envelhecido demais, mas sempre bonito na sua madeira de lei.

Mas o guardado lá dentro é de valor sem igual: um jogo de porcelana herança familiar. Tudo sempre assim, tudo sempre no seu lugar.

De vez em quando um cheiro de café torrado, um aroma gorduroso de tripa assada, um perfume especial de cuscuz de milho ralado.

Saindo desse velho e primoroso ambiente, logo adiante o quintal. Que saudade daqueles tempos dos quintais, daqueles cercados com árvores frutíferas e galinhas ciscando ao redor.

Onde estão os quintais, os belos quintais com seus cantos de plantas medicinais, do boldo, do manjericão, do mastruz, da raiz curativa pra qualquer doença?

Quintais de poleiros, de mamoeiros e cajueiros, de varais e de tanques de lavar roupa. Quintais de tronco largo para sentar, de tamborete para fumar o cigarrinho de palha, de purrão para juntar água de chuva.

Quintais de pontas de vacas e de meninos brincando de fazendeiro. Não. Não existem mais os quintais. Mas ainda assim eu vou além da porta da cozinha só para imaginar outros tempos.

Quintais de molduras de saudades, de instantes para os reencontros com o passado. É no quintal que o radinho de pilha é ligado e onde o olhar vagueia em inesquecíveis imagens. O vento sopra e vai secando uma lágrima descida num canto do olho.

Quintais que iam avançando e de repente já davam na mata, nas catingueiras, nas umburanas e aroeiras. Um bicho corre e de repente já está no quintal, querendo entrar na cozinha. Então o cabo de vassoura é levantado para espantar a aparição repentina.

Quantas lágrimas são derramadas por cima das roupas sendo lavadas e enxaguadas nos tanques velhos dos velhos quintais. E também quantos soluços são exalados perante as roupas estendidas nos varais, com seus braços abertos querendo voar.

Ali está uma mulher estendendo a roupa e cantarolando uma velha canção: “Tardes sertanejas que se vão, logo chamam as luas do sertão. E eu aqui tão triste, ai como dói meu coração...”. Será minha mãe? Será sua mãe? Não sei. Não sei. Só sei que dá saudade. Eu sei.

Os quintais já não existem mais. Mesmo nas cidadezinhas interioranas, poucos são os quintais que ainda podem ser encontrados. As velhas cercas foram substituídas por muros, o chão das plantas e dos bichos foi transudado em cimento frio.

Abrir a porta da cozinha e seguir mais além já não causa sensação prazerosa alguma. Não há o canto de um passarinho, não há uma fruta caída, não há ovo de galinha a ser recolhido. Também não há mais a plantinha curativa no canto nem o velho tamborete.

E da porta da frente em diante apenas o asfalto, a buzina, a azucrinação do dia. Um viver que é vida, mas não é tão viver na vida.


Nota do Editor: Rangel Alves da Costa é poeta e cronista. Mantém o blog Ser tão / Sertão (blograngel-sertao.blogspot.com.br).

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