Segundo a tradição cristã, os eventos em torno da morte e da ressurreição de Cristo que constituem a principal festa do cristianismo trazem em seu bojo grandes esperanças e são de importância universal para a humanidade. A cidade do Rio de Janeiro foi fundada por Estácio de Sá em um período quaresmal. E passados 453 anos, vivem os cariocas, mais uma vez e de forma agudamente inédita, um período de paixão que os faz mártires cotidianos – como seu Santo padroeiro - da criminalidade que ganhou formato epidêmico. Completou no dia 16 de março deste ano, mês do decreto que instaurou uma intervenção federal militar na área da Segurança Pública. Noves fora a bizarrice jurídica de uma intervenção parcial, algo não previsto na Constituição, a motivação desse ato construído sem planejamento, ao sabor de uma ação marqueteira que buscou mudar o foco das atenções da grave crise política e de credibilidade por que passa o governo central, trouxe em caráter inédito para o centro da cena política e social as Forças Armadas, notadamente o Exército Brasileiro. O general Braga Neto, nomeado interventor, teve de início uma postura honesta e transparente ao afirmar que não tinha plano para a tarefa que lhe fora confiada. Além disso, identificou de forma correta que uma das questões centrais a ser tratada no seu consulado seria a da correição das polícias, pois como disse o ex-chefe de polícia do Rio, delegado Hélio Luz, “o problema da segurança é mais dos mocinhos que dos bandidos”. Passados 30 dias, a situação é pior que antes do decreto. Comparado ao mesmo período do ano anterior, os números da segurança pública se deterioraram ainda mais. E como ápice dessa lua de fel para coroar o mês de intervenção, o assassinato brutal da vereadora Marielle Franco mostra que o poder paralelo ao Estado afronta a democracia e busca delimitar territórios. Diante desse quadro, espera-se que o general Braga Neto assuma de fato o comando da situação, impondo sua autoridade sob as polícias e preservando a imagem das Forças Armadas, não limitando sua atuação a um pretenso e já fracassado laboratório em um bairro popular na Zona Oeste do Rio. Enquanto isso a cidade é martirizada diuturnamente pelo crime com uma PM despreparada que produz cadáveres, atirando a esmo em confrontos no meio de civis, nas ruas e favelas do Rio. São 3.967 tiroteios ocorridos em 2017. E com baixíssimo resultado prático. Esse martírio dos cariocas, cujo símbolo foi a morte da vereadora Marielle e de seu motorista, pode e tem soluções. Basta que a sociedade civil, o poder público e os homens e mulheres de bem possam conduzir em aliança uma guinada em que a produção da paz social será resultado de um enfrentamento decisivo entre o modo velho pensamento da segurança pública e suas práticas e o novo modo que deve se basear no tripé planejamento, inteligência e repressão qualificada. Enfeixados por uma ação que traga o Estado em sua integralidade às áreas hoje dominadas pelas milícias e pelo narcotráfico, junto com segurança, educação, saúde, cultura, empreendedorismo, dignidade, oportunidades e direitos humanos. Após a Paixão, vêm a Ressurreição e a Páscoa. Elas abrem uma nova perspectiva. Os incontáveis sofrimentos que se transformam em dramas podem ter seu fim. Mas há de se ter vontade política para se fazê-lo. Sem isso, o martírio vai prosseguir e se aprofundar. E o Rio viverá uma eterna paixão. Nota do Editor: Newton de Oliveira é professor de Direito da Faculdade Mackenzie Rio e ex-subsecretário geral de Segurança do Rio de Janeiro.
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