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Opinião
23/03/2018 - 06h34
Água em discussão: ouro azul não é ouro de tolo
Carlos Augusto Figueiredo
 

"Compartilhando Água" é o tema da 8ª edição do Fórum Mundial da Água (FMA) que, pela primeira vez, é sediado no Hemisfério Sul e acontece de 18 a 23 de março de 2018 no Brasil, em Brasília. Em um momento histórico, quando se discute a escassez de água trazida pela mudança climática e pelo intenso avanço humano sobre os ambientes naturais, o tema não poderia ser mais apropriado. Aproxima-se da época em que o termo “Ouro Azul”, como a água já foi chamada, terá cada vez maior significado. No entanto, com o tema - Compartilhando Água - o evento é posto sob suspeita e acusado de representar prioritariamente interesses de privatização desse recurso.

De fato, o Conselho Mundial da Água é composto por cinco colégios e o maior destes é o das empresas e instalações (barragens, adutoras, hidrovias etc.), representando 30% dos componentes do conselho. Como resposta a essa suspeita surgiu o Fórum Alternativo Mundial da Água (FAMA) como um braço do Fórum Social Mundial que acompanha os Fóruns Mundiais da Água desde o terceiro FMA em 2003, em Quioto. Nesse ano, o FAMA acontece na mesma época e lugar, com o tema "Água é um direito, não mercadoria", e, claro, diz respeito às formas de compartilhamento da água.

Uma das riquezas do Brasil é a água em abundância, nosso Ouro Azul. Ou, pelo menos, é o que se ouve de maneira relativamente descompromissada. O que o senso comum não se dá conta é o porquê de termos água em abundância. E, diga-se de passagem, que vários Brasis já não têm tanta água assim e alguns nunca tiveram desde o tempo da colonização.

Vamos começar por aí. O Brasil não é extremamente rico em água. A Amazônia é, o Pantanal é, mas a Mata Atlântica – onde vivem cerca de 70% dos brasileiros - está deixando de ser. O país é dividido pela Agência Nacional de Águas em 12 regiões hidrográficas e dessas a região amazônica tem aproximadamente 80% da disponibilidade hídrica total do País. Ou seja, nas regiões mais populosas, a disponibilidade hídrica se assemelha à de regiões igualmente populosas na Europa.

Agora, por que o Brasil é rico em água? Primeiro, por causa da Bacia Amazônica e por suas complexas interações entre o ecossistema amazônico e a "produção de água". A vegetação, especialmente a nativa, tem enorme importância na transpiração e na diminuição do escoamento superficial das chuvas. E o que isso tem a ver com o tema central do Fórum Mundial da Água? Ora, se uma de nossas riquezas é a água em abundância, como fazemos para compartilhá-la? Aí é que começa o conflito. O ser humano não é hábil em compartilhar e quando se trata de um bem tão precioso, os ânimos se acirram.

Em primeiro lugar, quando falamos de compartilhamento, estamos falando dos quase 80% de toda a água consumida mundialmente na irrigação e pecuária. O consumo doméstico, tanto no Brasil quanto no resto do mundo, é de aproximadamente 10% da água disponível. Os 10% restantes vão para a indústria. Isso quer dizer que o grande volume de água consumida está direcionado para o setor produtivo.

A principal forma de compartilhamento da água, ao contrário do que se pode pensar, não é o transporte e distribuição de água líquida em si, mas o que se chama de transferência virtual de água, que acontece quando a produção, principalmente agrícola, é levada de sua área de produção para os centros consumidores. Desde locais próximos como a Serra do Mar, entre as cidades de Teresópolis e Nova Friburgo para a cidade do Rio de Janeiro (RJ), como distantes como as grandes quantidades de soja brasileira exportada internacionalmente. As verduras do interior fluminense transferem a disponibilidade hídrica da região para a grande metrópole. A soja brasileira teve 77,8% de sua exportação em 2017 destinada à China, que recentemente triplicou sua importação de produtos que transferem água, desta forma contribuindo para aliviar o estresse hídrico chinês. Assim como a soja, uma importante commodity brasileira, outros produtos agropecuários carregam um forte componente de disponibilidade de água (e território) que não é levado em conta na comercialização. Em termos internacionais, quem detém água, detém alimentos; e nações dependentes de importação para alimentação estão em forte desvantagem na geopolítica. Se por um lado a transferência virtual de água pode ser vista como instrumento de pressão geopolítica, por outro, pode também ser vista como solução para otimizar o consumo hídrico no planeta. O mesmo dilema pelo qual passa o comércio internacional globalizado.

Também há formas diretas de compartilhamento. O transporte da água, um mineral bastante pesado, é caro. No entanto, desde a Antiguidade são construídos aquedutos para trazer água de lugares distantes para os locais de maior consumo. A comunicação entre bacias hidrográficas através de projetos de transposições de água é a expressão máxima e atual dos aquedutos. Projetos custosos – do ponto de vista financeiro, em materiais e energia – são realizados ao redor do mundo para transportar água entre bacias hidrográficas adjacentes como forma de solidarizar a disponibilidade de água. Contudo, os prejuízos ambientais mostram que essa prática despe um santo para cobrir outro.

Um território sem água, ou onde a maior parte do uso da água é destinada à indústria (de bebidas) se torna inviável para viver. Enormes conflitos surgem de maneira semelhante aos da exploração de fontes de água por grandes indústrias. As grandes alterações na paisagem ocasionadas pela construção de barragens hidroelétricas ou para abastecimento trazem perdas irreparáveis para o ecossistema e as comunidades humanas locais.

Essas formas de conflitos no compartilhamento da água são discutidos tanto no FMA quanto no FAMA. Resumem-se no uso da água para benefício de populações distantes em detrimento das populações das regiões doadoras. A diferença entre os dois fóruns situa-se principalmente na discussão sobre a legitimidade de abordagens capitalistas versus socialistas na gestão da riqueza. Neste caso a riqueza representada pelo uso dos recursos hídricos.

Como multiplicar esta riqueza? Sim, porque pensar riqueza apenas em termos de gastar o que se tem (o uso) não é sustentável no sentido mais simples do termo. Começa por pensar que essa riqueza hídrica é distribuída no território nacional, o que não é verdade. E depois, que a riqueza existente no território brasileiro é uma dádiva divina e não carece de cuidados. Um antigo provérbio árabe já dizia: "confie em Alah, mas amarre seu camelo." Ou seja, há em uma boa parte do Brasil e da América do Sul excelentes condições de disponibilidade hídrica e é uma questão de governança gerenciar esse recurso para benefício das presentes e futuras gerações.


Nota do Editor: Carlos Augusto Figueiredo é coordenador do curso de Ciências Ambientais da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO) e membro da Rede de Especialistas em Conservação da Natureza.

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