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SEÇÃO
Crônicas
17/10/2017 - 07h17
O piso e a solidão
Henrique Fendrich
 

Uma vez eu recebi uma notícia que me deixou sem chão: o piso da minha casa começou a se desprender e precisava ser trocado. Casa era como eu chamava o quartinho que aluguei por seis anos em Brasília. Era só quarto e banheiro mesmo, mas nem assim eu me dignava a limpá-lo, tinha sempre uma mulher que fazia isso para mim. Um dia, Dona Lúcia, a dona do quarto, resolveu ajudar essa mulher e trouxe um produto químico fortíssimo que prometia acabar com a sujeira do piso em dois toques. De certa forma, deu certo, já que nunca mais aquele piso precisou ser limpo outra vez. Quando o piso começou a balançar, Dona Lúcia se deu conta do que havia feito, mas já era tarde demais: o meu quarto estava flutuando.

O único remédio era trocar todo o piso. Evidentemente, eu não poderia ficar ali enquanto fizessem o trabalho. Dona Lúcia estava bastante chateada consigo mesma, pediu mil desculpas e disse que iria me abrigar pelo tempo que fosse necessário. O quarto que eu alugava, em verdade, ficava aos fundos da casa dela, de maneira que a minha mudança para lá podia ser vista como uma mera troca de cômodos. Tratei de tranquilizá-la, no fundo eu estava achando aquilo até bastante divertido.

Na casa de Dona Lúcia moravam apenas ela e seu irmão. Ela tinha perto de 70 anos e o irmão era um pouco mais novo. De nada haviam adiantado os incríveis sete casamentos pelos quais Dona Lúcia havia passado. Renderam algumas filhas, é verdade, mas essas nunca a visitaram durante todo o tempo em que estive lá. O irmão era um tipo arredio, mal saia do seu quarto, onde escutava as suas missas e dormia de luz acesa. Volta e meia os dois se desentendiam e, do meu quarto, eu podia ouvir as brigas. Viviam assim há muitos anos, sem se misturar muito com os inquilinos, até o dia em que tiveram que me abrigar.

Os dois me receberam com muita solenidade. Enquanto listava todas as coisas que eu estava autorizado a fazer, Dona Lúcia ainda lamentava o erro que havia cometido. Era coisa de dar pena como se afligia com o problema do piso. Ela era uma pessoa bastante nervosa, que inclusive tomava remédio controlado. Agradeci a acolhida e me instalei no seu quarto de visitas. Dona Lúcia foi então ao seu próprio quarto e o irmão foi ao dele. Nessa primeira noite que passamos juntos, ficamos separados.

No dia seguinte, pela manhã, tomei café na mesma mesa que eles tomam, mas eles não haviam ainda levantado, de modo que fui ao trabalho sem vê-los. Ao voltar, Dona Lúcia me contou as novidades sobre o piso: o homem havia dito que era coisa rápida, já havia arrancado o piso solto, no outro dia colocaria o novo e depois eu já poderia voltar. Isso tranquilizou um pouco Dona Lúcia. A noite foi igual à outra, cada um dentro de um quarto.

No outro dia, encontrei Dona Lúcia de pé, bastante animada. Ela vestia um casaco de esquimó e me viu de manga curta. Conversamos sobre o frio, ela ria, enquanto eu tomava café ela reviu todo o drama do piso, agora já achando tudo muito engraçado. Eu apenas deixava aquela euforia correr solta. Perguntou-me coisas do trabalho e comentou coisas do noticiário. Disse para não me preocupar, que ela lavaria a minha louça. E teve tantos cuidados comigo que pareceu que me considerava um filho.

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