- Santos Dumont! O senhor é o Santos Dumont, né? - Em carne e osso. Quer dizer, sem carne e sem osso. Você quem é? - Senna. O Ayrton, sabe? - Sena? O rio da minha lindíssima Paris? - Não, não. O rei de Mônaco. Béco, para os íntimos. O piloto, tricampeão da Fórmula 1. O namorado da Adriane Galisteu... - Agora, puxando pela memória, acho que já ouvi falar de você, sim. Faz pouco tempo que desencarnou, não é? - Vinte e três anos... o senhor chama isso pouco tempo? - Ah, foi outro dia mesmo. Pra quem já está aqui desde 1932, você nem gelou a carcaça, meu rapaz. Lembro da minha hora como se fosse hoje. Estava no Guarujá, chateado com o que andavam fazendo com a minha invenção, e resolvi que não queria mais ficar lá embaixo. Aliás, sempre me senti mais à vontade aqui em cima. * - Pois é. Se naquele dia fatídico já existisse um cockpit feito com material de caixa preta, talvez eu estivesse salvo. Difícil me acostumar com a ideia, vim pra cá cedo demais. - Deixa de se lamentar, isso só piora as coisas. Mas me diz, como é que me reconheceu por essas bandas? - O chapéu, o terno, o bigode... como não poderia deixar de ser, é claro que o senhor é nome de aeroporto no Brasil. Um dos maiores que temos por lá. - E você deve ser nome de rodovia. - Sim. Mas o senhor é mais herói que eu, e é nome de estrada também. Duas, por sinal. Além de escolas, ruas, praças. Tem até uma cidade chamada Santos Dumont. - É, onde eu nasci. Chamava-se Palmyra, depois rebatizaram pra me homenagear. Fiquei sabendo por alguns irmãos espirituais. - Então. Cidade com o meu nome, por enquanto, não tem nenhuma. - Meu caro Ayrton, não é só você que guarda mágoa desse país ingrato. Outro dia mesmo estavam jogando truco por aqui o Duque de Caxias, o Dom Pedro I e o Tiradentes, amaldiçoando as últimas gatunagens de Brasília. Diziam que se soubessem que ia dar no que deu, não teriam movido uma palha. * - Sabe de uma coisa, meu jovem? Me dá nos nervos ficar a eternidade toda vendo esses anjos, com essas caras gordas e barrocas, batendo asinha pra lá e pra cá, sem rota de voo definida. A coisa aqui ainda está nesse tempo, de asinha nas costas. Até mesmo o avião, se você for ver, já é algo bem ultrapassado. Inventei essa traquitana em 1906. Tudo bem que o 14-bis era feito de seda e bambu e que a tecnologia aeronáutica evoluiu muito daí pra frente, mas é arcaico demais como meio de locomoção. Não sei se sabia, mas eu, o Einstein e o Steve Jobs estamos concluindo um protótipo de transporte na velocidade da luz. * - A Asa Norte e a Asa Sul. Tudo pelos ares, num ataque-surpresa. Que me diz, Ayrton? - A sua raiva de asa é grande mesmo, Seu Alberto. - Temos que destruir tudo, pra não correr o risco de sobrar algum corrupto vivo. Sabemos que nessa operação-limpeza vamos matar um monte de pessoas inocentes, mas os bons viriam para o céu de qualquer jeito. E vão dar graças ao Pai por se livrarem daquele inferno. - Isso, com certeza. - Pra dar tudo certo, vamos precisar de um piloto experiente e habilidoso. É aí que você pode ajudar. Afinal, velocidade é o seu negócio. Ainda que a velocidade, no caso, seja a da luz. - Nossa, deve ser demais essa sensação. E eu achando, lá embaixo, que 350 por hora era o máximo da adrenalina. - E então, podemos contar contigo? - Deixa eu amadurecer a ideia, a gente vai se falando. Me dá seu chapéu de lembrança do nosso encontro? - Só se você me der seu capacete.
Nota do Editor: Marcelo Pirajá Sguassábia é redator publicitário em Campinas (SP), beatlemaníaco empedernido e adora livros e filmes que tratem sobre viagens no tempo. É colaborador do jornal O Municipio, de São João da Boa Vista, e tem coluna em diversas revistas eletrônicas.
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