O país vem atravessando, nos últimos anos, uma das mais severas crises econômicas de todos os tempos. A atividade econômica diminui a cada ano, provocando, de um lado, a queda da arrecadação dos entes federados e, de outro, um aumento da demanda de serviços públicos em face do desemprego, principalmente nas áreas da saúde e da educação. No âmbito da União, o Congresso tem seguidamente autorizado execuções orçamentárias com “deficits” elevadíssimos. Estados e municípios, com suas receitas reais em declínio, enfrentam o aumento das despesas, inclusive das com pessoal (com crescimento vegetativo e reposições salariais). Com esforços nem sempre vistos e percebidos pela sociedade e pelos órgãos de controle, todo governador e todo prefeito é um perdulário. Os cidadãos pedem, exigem mesmo (até com apoio judicial), mais gastos com saúde, educação e segurança, mas ninguém deita o olhar para o que a crise econômica vem fazendo com a arrecadação pública. Nesse quadro é fácil dizer “contenham as despesas”. Isso importa em diminuir os gastos em todas as áreas, todas já em níveis sofríveis. Os prefeitos que assumiram neste janeiro receberam, em grande parte dos municípios, o resultado nas finanças locais dessa longa crise: uma elevada dívida de curto prazo. Esse é um fato com que precisam lidar. Na União, as despesas do Orçamento de 2017 têm elevadíssimo deficit primário, mas, como disse acima, o Congresso aprovou metas fiscais que o permitem. Lembrem-se todos que tais metas é que balizam a limitação de despesas, e não os valores orçados de receita. Nos municípios, além da dívida recebida, os prefeitos precisam enfrentar a provável queda na arrecadação e as pressões sociais, dos servidores e dos contratados prestadores de serviços ou fornecedores, no sentido da atualização dos valores e, em relação à primeira, pela oferta de mais creches, escolas, serviços de saúde, segurança etc. Os prefeitos precisam ter conhecimento – e eles têm – de que necessitam dar continuidade aos serviços públicos, cumprir os programas que lhes impõem as leis do Plano Plurianual e das Diretrizes Orçamentárias. Também sabem que precisam solucionar a dívida de curto prazo recebida. Só que os recursos financeiros disponíveis ao longo do exercício em curso não são suficientes para atender aos dois objetivos. Aí está configurada, portanto, a “calamidade financeira”, como nos últimos tempos vem sendo denominada a situação em que estados e municípios estão sem recursos financeiros para pagar dívidas de curto prazo, principalmente os restos a pagar de exercícios passados, e, ao mesmo tempo, realizar as despesas com as ações orçamentárias necessárias em cada exercício. O Tribunal de Contas do Estado publicou preventivamente um Comunicado, no início do ano, onde se lê: “O Tribunal de Contas do Estado de São Paulo alerta sobre os riscos assumidos por prefeituras municipais quando da edição de decretos, sob o argumento de calamidade financeira, para suspender temporariamente pagamentos de despesas do exercício de 2016 e anteriores. A utilização desses instrumentos não encontra amparo no artigo 65 da Lei de Responsabilidade Fiscal e viola inúmeras regras do direito financeiro dentre outras, a quitação de Restos a Pagar e a ordem cronológica de pagamentos, o que poderá trazer implicações no exame de contas anuais”. Por que seria um risco, que pode trazer “implicações no exame das contas anuais”, suspender pagamentos da dívida de curto prazo em situações como as acima descritas? Se, nesse contexto, a prefeitura for obrigada a pagar os débitos de anos anteriores, em ordem cronológica, para só depois começar a pagar as despesas do presente exercício, também em ordem sequencial, não há a menor dúvida de que serviços públicos serão paralisados, contratos serão rescindidos pelos contratados, licitações restarão desertas, servidores entrarão em greve etc., como já estamos vendo em alguns estados e municípios. Relembro que há um princípio que exige a continuidade da prestação dos serviços pela Administração Pública e que, diante de relevante interesse público, as ordens cronológicas de pagamento podem ser justificadamente quebradas. Li na Internet artigo cuja autora afirma que “a calamidade financeira foi a saída encontrada por administradores irresponsáveis para fugir da lei” e que “não precisamos de manobras e estratégias escusas para voltar a uma situação fiscal favorável”. Penso que a decretação de estado de “calamidade financeira” tem efeitos meramente declaratórios, que objetiva dar à população, aos poderes e órgãos, inclusive aos de controle, informações sobre efetiva situação dos cofres públicos em face de compromissos assumidos e a assumir. É evidente que essa “calamidade financeira” pode gerar situação de verdadeira calamidade pública causada por diminuições na prestação de serviços públicos essenciais (lembrem-se do número de mortos no Espírito Santo em decorrência da greve de policiais). Além de divulgar a verdadeira situação do município, a decretação do estado de “calamidade financeira” não traz qualquer “ganho” para o município. Como não há ainda calamidade pública reconhecida pelo Legislativo Estadual, conforme artigo 65 da Lei de Responsabilidade Fiscal, os benefícios ali previstos não poderão, sob esse amparo legal, ser fruídos. Mas benefícios semelhantes serão obtidos só com o crescimento real baixo ou negativo do PIB, conforme prescreve o artigo 66 da mesma LRF. Não consigo ver manobras com o objetivo de fugir da aplicação de norma legal, mas apenas o enfrentamento possível de uma situação financeira muito difícil pelos prefeitos recém-eleitos. Nota do Editor: Austen S. Oliveira é advogado e consultor-técnico da área de Planejamento, Orçamento e Gestão da Conam – Consultoria em Administração Municipal.
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