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Crônicas
04/02/2017 - 07h43
Meritocracia
Daniel Nonohay
 

Se você é neutro em situações de injustiça, você escolheu o lado do opressor.” Desmond Tutu

Fernando estava sentado na mesa de jantar com a família quando viu o carro chegando. Um clima pesado instalou–se na sala. O inverno fora ruim para os negócios, como geralmente era. Todos ali sabiam que ele ainda não havia pago o preço devido ao vendedor do seu último carro. Era ele quem chegava para o cobrar pelo atraso e já havia mandado avisar que estava furioso.

Fernando não se abalou. Era, também, um vendedor. Construíra sua vida sobre esta habilidade. Ela já o havia tirado de um sem–número de problemas. Recebeu o vendedor na porta com um sorriso franco e sincero, como lhe era próprio. Convidou–o a entrar, comer e tomar um copo de vinho.

Em meio à conversa, enquanto ainda rediscutiam a forma de pagamento, Fernando elogiou o carro com o qual o vendedor chegara. Lá pelas tantas, os dois saíram para dar uma olhada no veículo.

O resultado? O vendedor deixou o carro com o qual tinha vindo e saiu com o que não tinha sequer sido totalmente pago. A dívida foi aumentada e renegociada.

Fernando é daquelas pessoas que possuem um talento genuíno. É inteligente. Sabe lidar com as pessoas, entre outras habilidades. Construiu uma grande empresa, que emprega boa parte da sua família.

Quando criança, não teve sequer uma sombra de Estatuto da Criança e do Adolescente para protegê–lo. Não foi criado por seus pais, mas por tios, semianalfabetos. Trabalhava de sol a sol. Educação não era importante ou prioritário. O essencial era ganhar o suficiente e sobreviver a mais um dia.

Num descuido do destino, que tem muitas outras pessoas para vigiar, fugiu da vida que lhe estava destinada e veio para Porto Alegre. Jovem, pobre, sem instrução e sem emprego. Contava apenas com o seu talento. E venceu.

Histórias como a dele fazem os defensores da meritocracia babarem de felicidade. Para eles, Fernando é uma prova viva de que o mérito individual, a persistência e a determinação prevalecem sobre todas as dificuldades. Prevalecem sobre famílias desintegradas e sobre a ausência de políticas públicas. Prevalecem sobre a omissão do Estado em garantir, ao menos, segurança, saúde e educação.
Infelizmente, seu caso prova o contrário.

Sempre que vejo histórias como a dele, de pessoas que largaram atrás, muito atrás, na corrida da vida, e conseguiram fazer uma longa prova de recuperação, eu imagino até onde poderiam ter chegado se tivessem largado junto com os outros. Onde estariam? Até onde poderiam ir sem essas âncoras que retardaram o seu progresso e lhes suprimiram anos inteiros de desenvolvimento? Certamente, muito além de onde estão, mesmo que estejam em boa situação.

Penso, também, nos milhares (milhões) que ficaram pelo caminho. Que não eram excepcionais. Que não tiveram persistência suficiente. Que tiveram que sustentar algum familiar doente. Que engravidaram antes do tempo, por ignorância. Que não tiveram o luxo de planejar a vida. Que não conseguiram sair do ciclo de trabalhar num dia para comer no outro. Ninguém registra a história dessas pessoas. Ficam à margem da estrada enquanto os outros passam, largadas em uma marginalização sem rosto. Unidas pela frustração. Nunca terão a chance de desenvolver suas potencialidades. Nunca serão quem poderiam ser.

A discussão sobre a meritocracia somente faz sentido quando as regras garantem um jogo minimamente equilibrado para todos.

No nosso Brasil, hoje, assim como em quase todos os países em desenvolvimento, ainda não conseguimos traçar linhas de partida minimamente próximas.

Defender a meritocracia em nossa realidade, portanto, é bater palmas para um jogo com regras desleais.


Nota do Editor: Daniel Nonohay (www.danielnonohay.com.br) é natural de Porto Alegre. É casado e pai de duas filhas. Juiz do trabalho, escreveu o seu primeiro romance à mão, em dois cadernos pautados, quando tinha 17 anos. É autor de artigos técnicos, na área do Direito, e políticos que foram publicados em livros, jornais e sites. Organizou livros de coletâneas. É colorado. Atuou como professor e é pós–graduado em Direito do Trabalho, Direito Processual do Trabalho e Direito Previdenciário. Foi Presidente da Associação dos Magistrados do Trabalho do Rio Grande do Sul. Atualmente, aproveita cada segundo livre para escrever, a sua grande paixão (depois, é claro, das “suas mulheres”).

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