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11/05/2012 - 10h17
A triste fraude do projeto Tamar - Parte I
Lúcio Lambranho - Papel Social
 

O Governo Federal pediu o bloqueio de bens do Projeto Tamar e o cancelamento do certificado de filantropia. Motivo: a fundação criada para proteger as tartarugas pagou para que um integrante do Conselho Nacional de Assistência Social (CNAS) e um advogado fraudassem a concessão do documento que dá à entidade o direito de ser filantrópica. Houve até falsificação de provas.

As tartarugas voltando para o mar após a desova, salvas do risco de extinção, são a marca registrada do projeto Tamar desde 1980. Mas a imagem positiva de preservação da natureza é bem diferente dos fatos narrados em uma ação produzida pela Advocacia Geral da União (AGU).

O processo, que tramita na Justiça Federal, revela fraudes e irregularidades na concessão do título de entidade de assistência social, o que daria ao Tamar uma isenção milionária de impostos.

No documento, a AGU pede o bloqueio de bens, o cancelamento do certificado de filantropia e a condenação da entidade por improbidade administrativa. A ação tem como base as conversas telefônicas gravadas e documentos apreendidos na Operação Fariseu, investigação iniciada ainda em 2005 por Polícia Federal, Receita Federal e Ministério Público Federal.

A apuração levou à prisão dois consultores contratados pelo Tamar ainda em março de 2008. Agindo nos bastidores do Conselho Nacional de Assistência Social (CNAS), o advogado Luiz Vicente Dutra foi flagrado pelas escutas dizendo que estava “com quatro conselheiros do CNAS” e ia “vender as tartarugas”.

O outro contratado pela entidade foi o então suplente de conselheiro do CNAS, Euclides da Silva Machado. Uma das principais provas da acusação é uma carta enviada por ele para o então diretor da Fundação Tamar, Victor Partiri, aonde o conselheiro diz que “o Tamar por si só, não pratica comprovadamente assistência social”.

No mesmo documento, o conselheiro dá a dica de como deveria ser a transformação para conseguir o certificado.

O primeiro ponto foi incluir as visitas dos turistas às bases do projeto no litoral brasileiro como atendimento gratuito para fins de assistência social. Além disso, foi criada uma manobra contábil onde passaram a considerar como gratuidade todas as despesas com mão-de-obra das rendeiras contratadas pela fundação para confecção dos suvenires.

Para os órgãos de fiscalização, a decisão dos conselheiros do CNAS era tão absurda que em menos de um mês a Receita Federal encaminhou um recurso ao Ministério da Previdência Social para pedir o cancelamento do ato.

Nos três anos (2003 a 2005) em que o Tamar pedia para que fossem consideradas suas atividades de assistência social, a entidade faturou mais de R$ 31 milhões com venda de brindes com a marca do projeto. Só este fato, segundo a Receita, já afastava qualquer possibilidade da fundação ser considerada filantrópica, pois a maior parte do dinheiro não foi aplicado em ações sociais.

O CNAS não tinha corpo de auditores para analisar livros contábeis das instituições. Concedia titulações com base no que era apresentado pelas entidades. Além disso, o próprio conselheiro Machado, que deu as dicas para a obtenção do certificado de filantropia, firmou um contrato com o Tamar, contrariando frontalmente o conselho de ética do CNAS. Os documentos mostram que Machado recebeu, por meio de sua empresa, R$ 29.400 do Tamar.

Isenção generalizada

Com o certificado de assistência social, hospitais, escolas e faculdades privadas obtêm vantagens fiscais que as livram de pagar milhões aos cofres públicos, na forma de tributos.

O principal dos benefícios é isenção total da cota patronal do INSS. De acordo com as investigações do governo e do Ministério Público, somente em 2007 a isenção concedida a sete mil entidades deu um prejuízo aos cofres públicos de R$ 2,1 bilhões.

As fraudes são gigantescas e antigas. A força-tarefa montada para apurar os crimes revisou isenções concedidas desde o final dos anos 90.

A Receita e o INSS dizem que as entidades beneficiadas não têm o direito de requerer o certificado de assistência social, pois não cumprem as 11 obrigações necessárias para a obtenção do registro. A principal delas é a que obriga as instituições a oferecem, pelo menos, 20% de serviços gratuitos nas áreas de educação e assistência social e 60% na área de saúde. Os percentuais são calculados sobre a receita bruta das entidades.

Fraudes ou inclusão de serviços, que não são considerados filantropia para se atingir esses percentuais, são comuns entre os processos investigados, como foi o caso do Tamar.

O projeto ambiental e as supostas entidades de assistência social já tinham sido flagradas pela Receita Federal, que ainda na década passada pediu o cancelamento dos certificados.

As entidades acabaram sendo anistiadas em 2009, graças a polêmica MP 446/2008, apelidada no Congresso Nacional de “MP da Pilantropia”.

A MP acabou sendo devolvida ao Executivo. Por isso, a ação contra a fundação ambiental também demonstra que há uma contradição jurídica no governo federal. Parecer dessa mesma AGU considera que apesar de ter sido rejeitada por deputados e senadores, os efeitos da MP continuam valendo.

AGU preferiu não comentar a decisão de processar o Tamar e ao mesmo tempo garantir anistia para outras entidades investigadas pela Operação Fariseu. Alega que não pode se manifestar, pois o processo está sob segredo de Justiça.

Priscila Wiederkehr, diretora administrativa do Tamar, informou que o projeto não gozou de imunidade e que a Receita Federal negou o pedido de isenção. A entidade não respondeu as questões sobre o processo enviadas pela reportagem, mas protocolou no final de 2010 um pedido para renovar sua certificação.

O advogado Luiz Vicente Dutra, flagrados pelas escutas da PF, disse que “todas as acusações são infundadas e foram obtidas de forma ilegal por meio de escutas”.

A reportagem não conseguiu contato com o ex-conselheiro suplente do CNAS, Euclides Machado, nem com seus advogados. Em suas alegações no processo, ele diz que nunca escondeu o fato de prestar serviços ao Tamar e que nunca votou nem participou de pareceres para entidades com as quais mantinha contratos. O Código de Ética do CNAS diz que “é vedado prestar serviços de consultoria remunerada nos processo de registro e certificação das entidades de assistência social, concomitantemente com o exercício da função de conselheiro”.

Pilantropia

Baixada a poeira da crise política criada pela devolução da MP, o governo conseguiu aprovar um projeto que afrouxou ainda mais as regras. Trata-se da lei 12.101/2009. No artigo 31, a União decidiu que o direito à isenção das contribuições sociais poderá ser exercido pela entidade a contar da data da publicação da concessão de sua certificação.

Com a nova regra, não existe mais a necessidade de que a entidade peça o benefício em processo administrativos na Receita Federal e até evita que ela entre com ações na Justiça. Ou seja, mesmo sob suspeita, as entidades supostamente filantrópicas ganharam mais um benefício sem que se tenha causado nenhum alarde na imprensa e sem nenhuma implicação política como teve a MP 446/2008.

Acreditando agir acima de qualquer suspeita, o conselheiro Euclides Machado representava uma obra social destinada a ajudar idosos e doentes em Brasília. Outros conselheiros envolvidos nas denúncias também atuavam como representantes de entidades assistenciais e religiosas. Por isso, a ação da PF foi batizada de “Fariseu”, por considerar que os envolvidos agiam como os “antigos indivíduos que aparentam santidade, mas não a têm”.

A inspiração dos policiais federais vem da passagem bíblica: “Ai de vós, escribas e fariseus, hipócritas! Pois que sois semelhantes aos sepulcros caiados, que por fora realmente parecem formosos, mas interiormente estão cheios de ossos de mortos e de toda a imundícia”. A denúncia contra a Fundação Pró-Tamar revela o lado até então obscuro de uma entidade considerada como um caso de sucesso de ação ambiental no Brasil, mas que parece ter sido seduzida, assim como muitas outras, pelas facilidades para ludibriar a burocracia federal.

Leia aqui a segunda parte dessa reportagem.


Nota do Editor:
Lúcio Lambranho é jornalista. Foi repórter no Correio Braziliense e no Jornal do Brasil. Recebeu menção honrosa no Prêmio Vladimir Herzog por reportagens sobre trabalho escravo publicadas no site Congresso em Foco. No mesmo portal, foi um dos responsáveis pelas reportagens sobre a farra das passagens aéreas, série jornalística vencedora do Prêmio Embratel de Jornalismo Investigativo e do Prêmio Esso de Melhor Contribuição à Imprensa em 2009. Clique aqui para acessar a página original (Papel Social).

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