José Ronaldo pergunta: o que fazer com um sem-noção, que faz espoucar fogos de artifício sem parar, no Natal e no Ano Novo? Modestamente, respondo: um quase nada. Quase nada porque se trata de um adulto, e adultos não são muito dados em buscar educação. É na educação formal como diz José Ronaldo - mas não só nela, acrescentamos -, que se pode quebrar a dinâmica dos sem-noção. Também na Educação dos educadores sociais, dos Grilos cri-cri, da mídia e, principalmente, da família, a velha e conhecida educação que vem de berço, do modelo vivido, de casa. O texto O que é, de fato e por lei, uma família, publicado aqui n’O Guaruçá, corrobora o que José Ronaldo antevê: "O pior de tudo é que têm crianças e adolescentes admirando esse procedimento, ou seja, logo copiarão tal exemplo. Desse modo ocorre a multiplicação dos sem-noção." Em certa medida, equivale a dizer que cada vez mais a família abdica de suas responsabilidades e de suas funções, delegando-as, indevida e inutilmente, à escola, que não dá conta do básico, o bê-á-bá, nossa ultrajada Língua Portuguesa, a aritmética, a álgebra, que dirá o cálculo. Mas há também a história, a geografia, a arte. Claro, poderíamos apelar para a polícia, porque os fogos certamente ultrapassam os tantos decibéis (85) que a legislação municipal impõe como limite. Mas o próprio poder público solta, ou deixa soltarem, esses barulhentos fogos nas épocas das festividades. E os advogados têm, bem dentro do bolsinho do colete, o conceito do "socialmente adequado", como excludente de antijuridicidade. Não há massa crítica na sociedade para proclamar a inadequação dos fogos de artifício. Na verdade, mais do que tolerada, a prática, de raízes culturais e importada ainda na fase da colonização portuguesa, faz parte do calendário oficial de muitas cidades brasileiras (especialmente do Nordeste), fez o maior sucesso no réveillon de anteontem (ou tresantontem, palavra que o dicionário não registra mais) do Rio de Janeiro e é cultuada em terras portuguesas: é a atração na Ilha da Madeira também no réveillon, mas a portuguesada adora soltar fogos o ano todo, não apenas nas festas dos Santos Populares, capitaneados por São João. Na posse da presidenta, ainda agorinha, com alguns cuidados adicionais, foi inescapável a tradição dos 21 tiros de canhão. Bem verdade que os artilheiros foram orientados para que colocassem mínima quantidade de pólvora, para limitar os estragos em humanos e em janelas de vidro que tiros só um pouco mais potentes causariam. Tiros de festim, pequena festa, mas que, na tradição militar, também são empregados em cerimônias fúnebres. Não são só os cães. Os dois gatos que tenho aqui em casa também se enfiam em qualquer canto onde se sintam protegidos. Imagino que os gambás que vivem aqui também não gostem. Nem os habitantes remanescentes da Mata Atlântica em nosso quintal. O que falar dos sacis com seus cachimbos? Suspeito que, marotos como são, não apenas gostem, mas talvez até usem a brasa do cachimbo para acender alguns fogos barulhentos. E há também os pássaros, os daqui, terra de pássaros e de observação dos pássaros do Rizzo. De dia, quando em vigília, esvoaçam desordenadamente, quando há rojões espoucando. À noite, suspeito, encolhem-se de medo nos seus abrigos. Minha tia Izolina, irmã de meu pai, vivia às turras com um fiel companheiro de uns 40 anos de convivência, um papagaio. Ranzinzas, os dois. Uma ranhetice recíproca, mas creio que isso ajudava a mantê-los vivos, vivazes. E também porque, lá pelas tantas, passavam a trocar carícias e gentilezas. Tia Izolina, um bocado surda, não se incomodava com os fogos. Mas o papagaio ficava apavorado e voava seu voo desajeitado diretamente para o colo da tia Izolina, que o cobria com seu volumoso braço. O Zico, um pequeno galinho que mora num galho da murta em frente à casa do Osvaldinho, meu fiel vizinho caiçara, não canta em noites de foguetório. A massa crítica que mudará isso poderá, sim, ser atingida, ao menos aqui, na sociedade ubatubense. É que já existem alguns precedentes. Ainda recentemente, pela pressão de pessoas e grupos organizados, um projeto de lei foi retirado para "encerrar os debates" - pessoalmente, creio que indevidamente, porque deveria sim passar pelo debate, pela discussão da sociedade e exigir de sua parte organizada, bem como cada um dos vereadores, mostrar sua cara, dá-la a bater. Era um projeto que permitia exibições de pássaros em cativeiro, algo que revoltou um bom segmento da sociedade local. Há também várias iniciativas e ONGs ocupadas com a preservação ambiental - pena que muitos de seus líderes daqui morem em outras paragens - que realizam aqui trabalhos importantes. Contudo, é preciso mais, para inverter uma tendência calcada em práticas culturais antigas. Para finalizar, um poema do portuga Pedro Ayres Magalhães, cantado pela voz de anjo de Teresa Salgueiro, do grupo musical Madredeus, cujo título é Destino, mas bem que poderia ser Destino de Educador. Para ser ouvido sem os rojões dos sem-noção. Águas paradas Claro luar Um quase nada É muito melhor Nesta viagem que comecei Grave miragem a mim chamei Se foi meu destino Contar uma história tão breve É longo o caminho Mas a alma quer Se foi meu destino Cantar com uma voz que me chora É longo o caminho Mas a alma adora Nota do Editor: Elcio Machado (elciomachado@ubaweb.zzn.com), 56, batizado como Elciobebe, caiçara em construção. Mantém o blog Exercícios de Cidadania (cidadania-e.blogspot.com). Marlene Waideman, nascida na Cabeceira das Águas Paradas, residente em Ubatuba, é psicóloga, com formação e exercício de clínica, doutora em Educação e professora universitária e pesquisadora-coordenadora com enfoque na família.
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