Vinte anos depois de ter sido restabelecida no Brasil, a democracia é o regime político preferido por mais de dois terços da população brasileira. Um paradoxo, no entanto, aponta para níveis elevados de desconfiança dos cidadãos frente aos órgãos políticos, percepção que está associada com os “déficits de funcionamento das instituições democráticas no país”. Essa é uma das conclusões de um trabalho de pesquisa desenvolvido por José Álvaro Moisés, professor do Departamento de Ciência Política da Universidade de São Paulo (USP), com base em dados de quatro pesquisas nacionais de opinião coordenadas por ele em 1989, 1990, 1993 e 2006. No âmbito de um Projeto Temático apoiado pela FAPESP, o trabalho analisou os significados atribuídos ao conceito de democracia na visão de cerca de 9 mil cidadãos brasileiros, que responderam à pergunta “Para você, o que é a democracia?”, incluída em questionários realizados ao longo desses 17 anos. O Projeto Temático "A desconfiança dos cidadãos nas instituições democráticas" foi iniciado em 2005 e está em andamento. “Diferentemente de outros períodos da história, a preferência dos brasileiros pela democracia é hoje majoritária e sua adesão ao regime democrático é validada pela rejeição de mais de dois terços do público a alternativas antidemocráticas, como a volta dos militares ao poder ou o estabelecimento de um sistema de partido único”, disse Moisés. “Mas a maioria dos brasileiros ainda desconfia das instituições democráticas e, em especial, dos partidos políticos, do Congresso Nacional, do sistema de leis e do Judiciário. Os índices mais altos de confiança se referem a poucas instituições públicas e privadas baseadas em estruturas hierárquicas, como a igreja e as forças armadas”, apontou. No estudo, as respostas espontâneas dos entrevistados sobre o significado da democracia foram recodificadas pelo pesquisador levando em conta três dimensões do conceito de democracia: “liberdades”, “procedimentos institucionais” e “atendimento social”, sendo que a primeira incluiu menções às liberdades políticas, direitos individuais, liberdade de organização e de expressão, liberdade de participação e direito de ir e vir. O conceito “Procedimentos institucionais” incluiu variáveis como direito de voto, eleições livres, regra de maioria, representação política, acesso à justiça e fiscalização de governos, enquanto “dimensão social”, por sua vez, reuniu igualdade social, acesso a serviços de saúde, educação, habitação, emprego, salários justos e desenvolvimento econômico. Os resultados do estudo mostraram que os brasileiros associam a democracia majoritariamente com as noções de “liberdade” e de “procedimentos institucionais”. “Diferentemente das suposições dos céticos e de parte da literatura, a maior parte dos brasileiros consultados foi capaz de definir adequadamente a democracia em termos que envolvem duas das mais importantes dimensões que qualificam o processo democrático: o princípio de liberdade e os procedimentos e estruturas institucionais. Mas a dimensão social, por outro lado, teve pouco impacto nos resultados”, observou Moisés. Liberdades e desempenho Ao longo do tempo, segundo o pesquisador, a democracia foi associada com o seu significado político, tanto a uma perspectiva caracterizada pelas liberdades como a outra de natureza prática determinada pelo desempenho das instituições. “Isolados, esses dois conceitos podem dizer pouco, mas juntos definem uma visão razoavelmente sofisticada do processo democrático”, complementa Moisés, que também é diretor científico do Núcleo de Pesquisa de Políticas Públicas (NUPPs) da USP. De acordo com ele, levando-se em conta o peso que as desigualdades sociais e econômicas têm para a maior parte da população brasileira, surpreende o fato de a alternativa que recebeu a menor taxa de menções dos entrevistados ter sido à que se refere à dimensão social: o percentual dos que definiram a democracia dessa maneira foi inferior a 6% em 1989 e menos de 10% em 2006. “Em 2006, apenas oito em cada cem brasileiros definiram a democracia em termos de fins sociais, o que coloca em questão a hipótese segundo a qual as pessoas comuns preferem a democracia porque identificam esse regime apenas com o atendimento de necessidades básicas. Pelo contrário, as análises mostram que os indivíduos definem preferencialmente a democracia em termos de princípios, conteúdos e procedimentos”, explicou. Na literatura acadêmica o significado mais usual da democracia se refere “aos procedimentos e às instituições do sistema democrático, em especial, aos mecanismos de escolha de governos por meio do voto”. Existem, no entanto, outras perspectivas, segundo o estudo, que ampliam a abrangência do conceito, incluindo tanto as dimensões que se referem aos conteúdos da democracia como também aos resultados esperados no terreno da economia e da sociedade. “Vários autores definem a democracia, por exemplo, em termos de competição, participação e contestação pacífica do poder”, disse. Outro dado relevante apontado pelo trabalho é que o volume de brasileiros incapazes de definir a democracia diminuiu ao longo do tempo: de cerca de 46% em 1989 para menos de 30% em 2006. “O número de entrevistados que respondeu de modo inconsistente caiu de quase cinco em cada cem pessoas em 1989 para menos de três em 2006”, disse. Em outras palavras, em 2006, último ano do período analisado pelo pesquisador, depois de o regime democrático ter completado mais de duas décadas de existência no país, 70% dos entrevistados brasileiros foram capazes de oferecer respostas consistentes sobre o significado da democracia. “Essa é uma impressionante proporção somente comparável à encontrada em países de democracia consolidada e em países do leste europeu”, destacou Moisés. O trabalho será publicado em um livro que está sendo organizado pelo Departamento de Sociologia da Universidade de Brasília (UnB) e pelo Senado Federal, entidades que organizaram, em 2008, o 2º Seminário Internacional Estudos sobre o Legislativo: 20 anos da Constituição, que contou com a participação de Moisés.
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