Aos poucos, numa perspectiva aclarada pelo correr do tempo que ajuda a restabelecer a verdade dos fatos, a Revolução de 1932 deixa de ser vista como um levante regional, separatista e revanchista, e passa a adquirir feição nacional, como um embate do novo contra o velho. Essa visão mais vem ganhando corpo graças a estudos de historiadores sérios e isentos que, fiéis a uma das vocações de sua ciência, se debruçam sobre o passado para dele extrair lições que evitem a repetição de erros que comprometam o presente e o futuro. Em 1930, o mundo, incluindo o Brasil, sofria os efeitos da Grande Depressão, a crise internacional originada nos Estados Unidos. Então, o café já substituíra o açúcar como o principal produto de exportação, deslocando o eixo do poder econômico do Nordeste para São Paulo, estado que a partir da I Guerra Mundial (1914-18) iniciara um processo de industrialização que, embora tímido, contribuíra para distanciar a realidade paulista das condições do restante do País. Desenvolvimento urbano, fortes correntes imigratórias, reforma da máquina pública com adoção de concursos para escolha de magistrados, profissionalização da polícia e investimentos na educação, modernização dos setores produtivos (indústria, comércio, serviços), das relações de trabalho e das manifestações artísticas – todo um conjunto de profundas mudanças arrastava São Paulo para os novos tempos, mais democráticos. Naquele mesmo ano, Getúlio Vargas saía dos pampas gaúchos e assumia o Palácio do Catete, no Rio de Janeiro, como chefe de um poder federal provisório que, seis horas após instalar-se, emitiu seu primeiro decreto: “Este governo é autoritário e de duração indefinida”. E logo derrubou a Constituição vigente, fechou as casas legislativas e cancelou as eleições, baixou medidas populistas e adotou uma estratégia intervencionista para controlar as forças econômicas e políticas de São Paulo. Depois de meses de negociações infrutíferas, em São Paulo fervilhava um perigoso caldo de insatisfação, frustração e rebeldia, à espera somente de uma faísca para explodir. Ela veio com a morte a tiros de fuzil dos estudantes Miragaia, Martins, Dráusio e Camargo (criando a legenda mítica MMDC) durante repressão a uma manifestação pela Constituinte, no dia 23 de maio. Na manhã de 9 de julho, São Paulo se levantou em armas, iniciando a mais grave das revoltas que marcaram os turbulentos anos 20 e 30. O que mais impressiona os estudiosos é a mobilização popular do lado paulista: estudantes, empresários, intelectuais, políticos, jornalistas, operários, mulheres se uniram e, dessa coesão, deve ter nascido o fôlego para sustentar por quase três meses a luta desigual que colocou frente a frente um contingente de 30 mil revoltosos mal armados contra 100 mil soldados das bem equipadas forças legalistas. Além da mobilização popular, um outro aspecto atrai a atenção de especialistas e leigos apaixonados pelo tema (ainda os há e muitos): a ativa participação das mulheres, que apenas há cinco meses haviam conquistado o direito ao voto. Na reação contra a ocupação da cidade por “gaúchos que andavam pelas ruas arrastando as esporas e de poncho” e descrentes da promessa feita dois anos de uma nova Constituição, as paulistas se juntavam com braços cruzados sobre o peito e desciam a rua gritando “São Paulo é dos paulistas”, como relata Eclea Borge, uma das protagonistas dos protestos no livro “Lembranças de velho”. Elas logo se organizaram em associações, uma para prestar assistência aos civis, outra para dar tratamento médico aos feridos, uma terceira para costurar uniformes e tecer meias, gorros, luvas e meias para enviar ao front, pois julho de 1932 foi um mês gelado. Nesse embate do novo contra o velho, o derrotado de certa maneira foi vitorioso, como comprovam o destino de várias de suas reivindicações. Em 1934, junto com uma nova Constituição, nascia a Universidade de São Paulo, a primeira do País, atraindo professores estrangeiros que formariam novas gerações de dirigentes que, em anos recentes, ajudariam a dar uma nova feição à nação. O ímpeto da economia paulista pode ter sido retardado, mas não foi contido, nem pelo governo Vargas, nem pelo posterior pipocar periódico da intervenção governamental. Aqui nasceram e se consolidaram os grandes movimentos sociais e políticos que buscam, com maior ou menor sucesso, reduzir a distância entre os vários Brasis. Assim, não parece exagero acreditar que, em 1932, São Paulo foi derrotado numa batalha, mas ainda não perdeu a guerra pela modernidade, contra o atraso populista e as práticas obsoletas que emperram o ingresso do País no século 21. Nota do Editor: Luiz Gonzaga Bertelli é presidente da Academia Paulista de História (APH), diretor da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (FIESP) e presidente executivo do Centro de Integração Empresa-Escola (CIEE).
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