O foro privilegiado - prerrogativa que garante julgamento em instância superior por supostas práticas de crimes às autoridades, incluindo parlamentares, juízes, desembargadores, ministros, presidente da República, governadores e prefeitos - pode estar com os dias contados. Acaba de ser criada na Câmara uma comissão especial para analisar a PEC 130 - proposta de emenda constitucional de autoria do deputado Marcelo Itagiba (PMDB-RJ) que extingue esse benefício das autoridades. A proposta de texto substitutivo já foi aprovada pela Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) da Câmara e, se passar também pela comissão especial, deverá seguir direto para votação no Plenário. O jurista Miguel Pachá, ex-presidente do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro que hoje é sócio do escritório Tostes e Associados Advogados, diz ser favorável à apresentação da PEC. "Essa é uma discussão bastante antiga e tem suscitado grandes controvérsias. Especialmente no campo doutrinário, existem ponderáveis argumentos a favor e contra a adoção do foro privilegiado. Apóio a iniciativa do ilustre deputado fluminense, autor da proposta, embora concorde com o relator da matéria, deputado Régis de Oliveira, de que é preciso escoimar o radicalismo, que pura e simplesmente pensa em extinguir do texto Constitucional todos os dispositivos que garantem a prerrogativa de função, para o julgamento de crimes praticados por autoridades". Na avaliação do jurista, "algumas poucas exceções deverão ser mantidas, diminuindo-se as hipóteses hoje previstas. Críticas de que os juízes podem sofrer influências não merecem acolhimento, especialmente porque suas decisões são suscetíveis de recursos ordinários, sujeitas a reapreciações por instância superior, o que não ocorre, agora, em que a instância é única em caso de pessoas que gozam de prerrogativa de função". Já o criminalista David Rechulski, especialista em Direito Penal Público do escritório Rechulski e Ferraro Advogados, defende a manutenção do foro privilegiado. "Essa prerrogativa não é, de forma alguma, garantia de impunidade ou de tratamento especial, mas apenas a garantia de um julgamento imune a pressões, apolítico e extremamente técnico. Discordo dos argumentos lançados por aqueles que defendem a extinção do foro privilegiado, como se a proposta fosse um troféu de moralidade, um anseio do povo. Contudo, não podemos nos esquecer que a moralidade reside justamente em um julgamento justo, com as garantias do devido processo legal e, o mais importante, com a manutenção da presunção de inocência", avalia. Segundo o especialista, "no meio político, essa presunção, que é um princípio constitucional basilar de todo e qualquer Estado Democrático de Direito, muitas vezes é relegada a um último plano e que os agentes sob suspeição, principalmente quando parlamentares ou governantes, acabam sendo prévia e publicamente execrados, numa guerra muitas vezes insana entre oposição e situação e vice-versa, criando-se um estigma de culpabilidade capaz de afetar e convencer juízes ainda não tão experientes". Rechulski ressalta que, "mesmo que o foro privilegiado seja extinto, os recursos interpostos contra as decisões de juízes monocráticos serão apreciadas pelas instâncias superiores, o que, na prática, só aumentará o tempo de tramitação do caso". O criminalista Luciano Quintanilha de Almeida, sócio do escritório Vilardi Advogados Associados, também defende a manutenção da prerrogativa do foro privilegiado. "A fixação da competência pela prerrogativa da função foi criada para proteger o exercício de determinadas atividades, impedindo que se banalizem procedimentos de caráter penal ou de responsabilidade como forma de causar constrangimento político aos acusados, afetando a própria atuação do Governo e, por não dizer, do próprio Estado. Não se pode conceber, por exemplo, que um Ministro de Estado preocupe-se, em seu dia-a-dia, com demandas propostas por mera divergência sobre a forma da atuação ou as políticas desenvolvidas". Almeida defende sua posição enfatizando que a questão não trata de privilégio, mas de prerrogativa que garante que os ocupantes de determinados cargos, enquanto investidos da função, não estarão sujeitos a pressões de diversas naturezas. "Este é entendimento esposado pelo Supremo Tribunal Federal, no julgamento de ADIN 2.797-2, julgada em 15 de setembro de 2005", afirma. O criminalista ainda discorda de quem afirma que acabar com o foro privilegiado vai acabar com a impunidade. "O que causa a impunidade é a falta de uma estrutura adequada das mais altas cortes para o processamento das lides decorrentes da prerrogativa da função, uma vez que elas não estão preparadas para proceder, de forma célere, com a instrução processual, somada à imensa quantidade de recursos, permitida pelas regras processuais vigentes, que ocupa toda a estrutura disponível nessas cortes, impedindo o andamento e o provimento da jurisdição nos casos onde existe prerrogativa de função".
|