A paisagem vista hoje pelo potiguar Cícero Alves dos Santos é bem diferente da que ele esteve acostumado nos últimos 34 anos. Quatro meses atrás, ao acordar às 5h30 para trabalhar, Cícero abria a janela de madeira, única que havia na casa onde morava, e se deparava somente com um riacho "bem seco e empoeirado" - segundo ele mesmo -, e com o cercado onde criava patos, iluminados pelo sol. O lugar onde morava fica a 36 quilômetros do Rio Assu, no serrado que fica na região árida do agreste norte-rio-grandense, e é localizado no vale de mesmo nome, onde não chove desde outubro do ano passado. Cansado de sofrer com as intempéries da natureza, Cícero pegou a trouxa e foi embora para o sudeste do País. Quando chegou ao novo lar, Cícero não teve mudanças de hábitos. Continua acordando cedo para ir ao trabalho e abre a janela para o ar entrar. Porém, agora ele se depara com um mar de diferenças. O sol e a vista do riacho e dos patos foram substituídos por dezenas de barracos de madeira e caçambas cheias de lixo. Só o piso de terra não mudou. Essas são diferenças que, lamenta, incomodam-no e que "não deveriam nem existir". O novo retrato descrito por ele, radicado há quatro meses no Guarujá, litoral paulista, é a vista dos altos da favela onde atualmente mora, a Vila Baiana, no bairro Enseada. Cícero fugiu da seca porque, conforme ele, não se saberia "quando comeria algo, já que os patos morriam". Todavia, ele tem saudades do serrado. "Lá as coisas eram simples, mas bem mais bonitas, tinha a natureza", lembrou, ao ouvir o barulho de carros buzinando, bem diferente do som que os patos e a natureza potiguar emitiam. Mas Cícero não está só. Assim como ele, outros milhares de nordestinos migram para o Sudeste do País em busca de trabalho e melhores condições de vida. Conforme o IBGE, 40,6 % dos nordestinos que emigram dos estados que compõem o Nordeste vêm para São Paulo. Destes, 35,8% - cerca de um milhão e meio de pessoas - vêm para a Baixada Santista. Ainda alheio às novas realidades que o cercam, Cícero prefere lembrar do bem mais valioso que possui: as próprias raízes. Ele entoa em alto e bom som a música "Algodão" de Luiz Gonzaga num radinho de pilhas, enquanto cozinha aos aromas de baião de dois, arrumadinho e fava que cozinha. Desse modo, Cícero atraiu amigos como o baiano Luiz Ferreira Aguiar, quem esperava para a janta, e não teve quaisquer barreiras para se comunicar com ele, ou outros conterrâneos. Luiz mora no Guarujá há 25 anos. Cícero comemora a amizade. Já são "mais de 100 amigos" na Cidade. "Por esse lado, sinto-me em casa. Sempre que posso, também saio com meus amigos que também vêm lá de cima e vou comer uma buchada de bode! E graças a Deus, graças a Ele, tenho meu dinheirinho e posso ir bastante, víci?", alivia-se o potiguar. Tradição de fé Na casa de Cícero, a religião é emanada por todos os lados. De estatuetas do homônimo e santo - para muitos -, a quem foram atribuídos vários milagres em Juazeiro do Norte (RN), a vários santinhos que carrega na carteira, e que lê os dizeres dos papeizinhos diariamente. Mesma fé a qual o amigo é devoto. Luiz, 54 anos, veio de um sítio que fica há 70 quilômetros de Feira de Santana com o mesmo sonho de Cícero: o de construir uma nova vida. Morava em um casebre e também foi castigado pela seca. Conta que lá também sofreu a mesma aridez a qual o amigo também passara. "Eu trabalhava em plantações, mas não dava certo porque não havia lucros, tudo morria", recorda. Naquele lugar, também morreram as esperanças de construir algum futuro e Luiz teria que tomar uma atitude drástica. Perdeu quase tudo o que tinha e decidiu vir para o Guarujá com apenas uma mala de couro velha que continha duas camisas rasgadas, uma calça e um grande crucifixo de madeira. O baiano se lançou à própria sorte e chegou aqui literalmente descalço. "Uma mão lava a outra. Do mesmo modo que ajudo o Ciço aqui e agora, fui ajudado também por um camarada nosso que está para o almoço daqui a pouco", diz. "Andar com fé eu vou porque a fé não costuma faiá", como diz o também baiano Gilberto Gil. Passados dois meses, Luiz conseguiu trabalho em uma barraca de praia e dali não parou mais. No decorrer dos anos, fez muitos amigos que o ajudaram a trabalhar em bares, restaurantes, obras e prédios. E chegou a zelador. Depois de trabalhar 10 anos na função, resolveu montar o próprio negócio. Só que Luiz não conseguiu sozinho. O amor rondou sua vida e, entre tantos os dissabores, encontrou uma companheira, Aline. Diferente dos dois amigos, a moça não veio do Nordeste, já morava aqui. E também trabalha. Aline tem 46 anos, é de Guarujá e morou em Vicente de Carvalho, distrito de Guarujá, também conhecido como Itapema, onde Lula morou quando na época em que emigrou. Hoje o casal vive em uma confortável casa no Santa Rosa, bairro de classe média de Guarujá. "Agradeço a tudo o que tenho a Deus, por ter me dado a oportunidade de continuar vivo e com dois braços e pernas saudáveis para que eu pudesse trabalhar", emociona-se. Luiz é devoto, além do mesmo "Padim Ciço" do amigo, de nossa senhora da Aparecida. "Vou à igreja todos os domingos para ver a missa", confessa-se. A igreja para qual ele e Cícero vão é a católica matriz, localizada no centro de Guarujá. Ali, os dois praticam a fé junto às 16 famílias e amigos de conterrâneos. Entretanto, a devoção tem também outro motivo para o baiano. A filha única, Tatiana, nasceu prematura e correu risco de morte durante uma semana, a qual teve que passar em uma UTI. "Pedi aos céus para que minha filha ficasse boa. Ela era muito magrinha, tadinha, nasceu com apenas um quilo e meio", emociona-se. Tanta fé deu certo para o casal. Hoje, com nove anos, a menina esbanja saúde. Ao terminar de contar o porquê da fé, a esposa do baiano chegou e trouxe a menina. A garotinha entrou correndo no casebre e deu pulos de alegria ao ver o pai, que chegava do trabalho. Alegrou-se e não parou. Subiu em cima da mesa da sala e começou a pular. O pai, ao perceber que o prato cheio de baião de dois poderia cair no chão, orgulhou-se. "Esperta ela, não? Ei, desce daí, menina!", alertou em seguida. As quartas de forró Em comum, os laços culturais entre os dois amigos nordestinos não se restringem somente à culinária e religião. Os dois também não perdem uma quarta-feira sequer sem irem juntos a um forró. E na Baixada Santista há muitos. Lugares como a "Vaquejada", na estrada da Pouca Farinha, que proporcionam a quem os visita noites inteiras de dança, existem há mais de 10 anos e são invadidos por nordestinos e caiçaras. "Vamos sempre. É longe, mas vale a pena!", concordam os dois. Junto a eles, cerca de três mil pessoas passam pela casa todos os fins-de-semana. E os amigos do baiano e do potiguar podem se multiplicar mais, se assim depender do número de conterrâneos que vivem em Guarujá. Estimativas feitas pela Secretaria de Cultura Cidade apontam que 70% da população inteira do Município é composta por nordestinos que vivem em favelas como a de Vila Baiana, e adjacências dos bairros de Cachoeira, Vila Edna e, a maioria, em Vicente de Carvalho, distrito de Guarujá. "São todos naturalmente meus amigos", identifica-se. E há uma razão para tal. Vindos para cidades como a que Cícero e Luiz escolheram, tantos outros nordestinos se estabeleceram há mais de 50 anos nas cidades em toda a Região da Baixada Santista e preservaram seus costumes. De que modo fizeram isso? O suor do trabalho árduo, conseguido na maioria das vezes por meio do trabalho feito em condomínios, resultou para eles em investimentos pessoais. Exemplo disso é o amigo baiano de Cícero. Luiz e tantos outros nordestinos batalharam e estabeleceram comércio. No caso dele, um restaurante, o "Império Nordestino". E há as casas de artefatos típicos, de forró e outros lugares que já se misturaram à cultura caiçara. Em toda a Região, há cerca de 80 restaurantes e casas típicas, de acordo com o Santos & Região Convention and Visitors Bureau, órgão que divulga o turismo na baixada. Em nota, a assessoria de imprensa da entidade informa que pode haver mais estabelecimentos, os quais ainda não se cadastraram. Lugares como a "Casa do Norte", no Jardim Castelo, transmitem a sensação aos visitantes de que o Nordeste é mesmo uma região cheia de cores e sabores. Ao entrar no estabelecimento, misto de restaurante de pratos típicos com venda de acessórios, o visitante é remetido ao mesmo serrado onde Cícero morava. Caracterizados como se fossem praticamente Lampião e Maria Bonita, os donos do bar, o casal de pernambucanos José e Maria Almeida, recebem os clientes com a mesma simpatia a qual recebiam o bando que lideravam, que aterrorizou o agreste daquela região nos anos 30. Assim também é a tradicional feira de domingo, em Vicente de Carvalho. Lá, Cícero não deixa de ir um domingo sequer para ir comer, vender e comprar apetrechos. Reduto nordestino na Cidade, a "Feira do Rolo" - como é chamada por ele e pelos que já moravam em Guarujá - é rodeada por restaurantes de iguarias típicas que fariam Luiz Gonzaga deixar cair a sanfona. Tradicional para os guarujaenses, já existe há mais de 30 anos, a feira é o sinal de que a cultura não é somente espalhada, mas também é adquirida. Cícero mal acaba de chegar e é exemplo disso. Desde que veio, Cícero mudou as cores do clube que torcia antes - América de Natal, vermelho e branco - para as alvinegras do Sport Club Corinthians Paulista, "que se tornaram um verdadeiro amor eterno desde que chegou". Ele freqüenta os estádios. Dá um jeito de ir ver o Corinthians na cidade vizinha, Santos, em São Paulo, e segundo ele mesmo, dependendo da importância do jogo, "onde for". "Já fui ver o Timão até em Porto Alegre! Uma pena é essa violência que não entendo nos estádios daqui. Lá na capital (referindo-se a Natal) todos ficavam misturados na torcida e todo mundo saia em paz. Quando um gol do time que eu torcia lá saía e o torcedor dele estava a meu lado, tirava sarro dele e ele não se aperreava, até ria comigo!", recorda. Pormenores importantes A fusão das culturas nordestina e caiçara não é somente representada por fanáticos torcedores nordestinos. Há outros pormenores mais importantes, como entidades que as preservam e que existem nas cidades de Guarujá, Santos e Itanhaém. E o melhor: fazem-no com inclusão social. Em Guarujá, com a Associação Baronesa Esther Karwinsky. A entidade promove durante o ano várias atividades que semeiam as duas culturas na Região, incluindo a cultura negra. Entre as atividades, está a ser lançado o projeto "Violodum", destinado inicialmente a 60 jovens carentes dos bairros de Pae-Cará (Vicente de Carvalho), que aprenderão a fazer instrumentos típicos nordestinos. A empreitada ganhou este nome porque, quando prontas, as percussões ganharão como acompanhamento a tradicional camerata de violões guarujaense. Até aqui, já foram feitas apresentações de maracatu e ciranda às praças da Cidade neste ano. Projeto semelhante já está em andamento em Santos desde o ano passado. Por meio da ONG Proeco (Projeto Educacional de Conscientização e Orientação), jovens carentes da Zona Noroeste fabricam instrumentos como o xequerê, a zabumba e o alfaia. "Serve-me como unir o útil ao agradável", aprecia a estudante Laís Ferreira, 16 anos. Bem útil, aliás. O irmão dela, Sérgio Ferreira, 17, vê a confecção de instrumentos como saída para o mercado de trabalho. "Enquanto não arrumo emprego fixo, faço meus tambores aqui e os vendo para casas de instrumentos musicais", conta. O mesmo acontece em Itanhaém. Na cidade funciona a Anni (Associação Nordestina e Nortista de Itanhaém), órgão existente há quase sete anos e que desenvolve projeto para tirar crianças e jovens das ruas. O nome deste é "Bate Lata" e a fórmula é parecida. Consiste no ensino da confecção de instrumentos musicais feitos com material reciclável, como latas e garrafas plásticas. E em Cubatão há a ANC (Associação de Nordestinos de Cubatão). No ano passado, a entidade fez o 1º Encontro de Nordestinos da Cidade, que reuniu boa parte dos 60% de emigrantes que compõem o total da população de Cubatão. A mesma fusão cultural-social que existe nestas cidades também aparece como diversão. As noites de quinta a domingo, casas noturnas da Região propõem a já conhecida mistura de xote com ritmos moderninhos, traduzida como "forró universitário". O ritmo já é velho conhecido de jovens, como a estudante de direito Mariana Almeida, 19, que freqüenta o Manu’s, em Santos. "Não dá pra resistir ao ritmo, tem que cair na dança", gandaia-se. Os costumes, em suma, foram bem aceitos para a população da Baixada e para os nordestinos que nela residem. E não é só aqui, onde se concentram, à maioria. Um certo maestro carioca, Antônio Carlos Jobim, traduzira anos atrás, ao sabor de dissonâncias, o sentimento que Cícero e os amigos que também emigraram têm, na música "Pato preto". "Eu vou-me embora pro São Paulo, vou arranjar uma viração. Depois te pego com as crianças, a sanfona e o violão"... Para Cícero, feliz pelos novos amigos, que comiam fartamente à mesa do casebre, o sentimento pode ser dito de outra maneira. "A cultura é assim mesmo, a gente guarda o que tem e gosta, absorve o que nos interessa, e a guarda para a vida inteira", filosofa-se. Nota do Editor: Reportagem experimental produzida na I Oficina Itinerante de Jornalismo Cultural, promovido pelo 100canais.
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